Por Maurício Chichôrro Schütz
Oitenta e cinco anos e as rugas que vêm com a idade, o cabelo branco, até mesmo a roupa, ou pelo menos o estilo, com esse ar de antigo, de tempo percorrido e os olhos de vista turva, traídos pelo tempo, ou só cansados por ele. O chapéu na mão, certamente. É uma arapuca da qual não se escapa: ver o escritor com olhos de literatura.
Salim Miguel, ao alcance de nossas mãos, disse que toda a literatura é feita de "pessoas reais e pessoas de papel". O homem real me escapa, é uma lembrança; mas o homem no papel é assim: libanês de nascença, mas brasileiro de criação. Jornalista, dono da, nos dias de uma Florianópolis de memória, Livraria do Salim, leitor voraz e eclético. Preso como comunista pelo regime militar, escritor publicado há mais de 50 anos, de mais de 30 livros, entre romances e compilações de contos e onde mais se ajuntem palavras. O marido apaixonado de Eglê.
De início, há uma simplicidade de gente sábia – em nota de graça, diz que o contato com a juventude rejuvenesce os velhos, humildemente omitindo que o contato com os sábios engrandece os jovens. A fala honesta de histórias – conta que os textos são autobiográficos na concepção, nascidos das histórias que ouviu ou vivenciou – revela, na transparência da retórica, o verdadeiro Homem de Papel.
“Primeiro de Abril” conta de quase dois meses aprisionado pelo Regime Militar e de como, na liberdade da rua, a livraria do Salim, que na época sequer ainda era sua, mas retinha o apelido amável indissociável de sua presença cultural, deu forçadamente centenas de livros como combustível para uma fogueira militar contra a subversão de nossa pátria amada. Com o sorriso aberto e o tom jocoso, de jeito doce, não lamenta, mas diverte-se ao contar da ignorância das mentes psicóticas dos fascistas que queimavam “O Vermelho e o Negro”, romance de Stendhal e obra seminal do realismo francês do século XIX, ressaltando o vermelho do título como propaganda socialista. Em “Nur na Escuridão”, romance que deu ao escritor a nacionalidade de quem já era uma pérola da literatura catarinense, Salim traça a história de uma família imigrante do Líbano, não muito distante da sua próxima. E assim se segue, como bom jornalista, nas páginas dos romances e nas palavras de seus contos, a construção de um personagem pulsante de vida.
Sobre o processo de criação, de livros e da vida, Salim fala do trabalho árduo e persistente que é escrever. As palavras que se perdem, rasgadas e descartadas por não serem boas o bastante – apenas uma pilha escapou, o romance mais recente, “A Jornada de Rupert”, que relutantemente se guardou junto ao mofo de quase 50 anos e triunfou no coração que não conseguiu abandoná-lo – são vítimas da transpiração; as que sobram e ganham luz, são resultado da vocação, do trabalho de uma vida e de um exigente filtro de excelência.
A história segue palavra a palavra. Pelo menos três livros carregam novas páginas de um corpo tanto literário quanto literal, que solidificam o escritor, jornalista de coração, no campo das letras brasileiras e como parte fundamental da nossa cultura catarinense.
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