Por Laís Campos Moser
“Cala. Pensa. Concentra-se. Se esforça. Se perde para se achar. Ativada, a memória recua. Busca resgatar o passado. Retirá-lo do mais fundo do tempo. Devassar o escuro abismo. Tornar hoje o ontem”. O fragmento do romance Nur na Escuridão, de Salim Miguel, parece traduzir fielmente uma noite de conversa com o escritor. “Sou um jornalista que escreve ficção”. Assim ele se autodefine, por mais de uma vez. Sua figura calma, simples, simpática e extrovertida transforma-o em um ser extremamente humilde diante de sua vasta produção literária e dos muitos prêmios acumulados em seus 85 anos de idade.
Nascido no Líbano, em 1924, Salim imigra para São Pedro de Alcântara com a família quando ainda é criança. E é essa atmosfera que permeia parte de sua obra: a cidade de Biguaçu, os libaneses, os alemães. Narrar a vida de modo minimamente completo do escritor demandaria laudas intermináveis de quem conheceu de perto a ditadura e a prisão; de quem soube que os livros de sua livraria foram queimados em praça pública; de quem difundiu a arte moderna no Estado por meio do Grupo Sul; de quem se fez autodidata; e para quem é intrínseca a poesia, a cultura e a arte.
O mais premiado escritor catarinense tem um estilo extremamente peculiar de escrever. Seus personagens pensam e Salim escreve. O leitor entra na narrativa como se estivesse na própria consciência dos personagens. Sente o ritmo, a dinamicidade, a intensidade desses pensamentos. E muitas vezes se depara com a necessidade de parar por um instante, respirar, tomar fôlego e, então, prosseguir com a leitura. E para ele a crítica do leitor é parte fundamental de seu processo de escrita: “A um leitor passivo eu prefiro um leitor parceiro”, brinca. E complementa: “Como autor, o leitor é muito mais importante que o crítico”. Quando o livro chega nas livrarias ele não é do autor. “Ele é e não é”.
E sobre seu processo de criação Salim afirma que há várias maneiras de um escritor chegar a um livro. Acredita pouco em inspiração e muito em vocação, talento e persistência. “O último é o meu caso”, assume. “A palavra tem som, cor, cheiro. E é preciso acasalá-la com a palavra que vem antes e depois”. O escritor revela, ainda, que já rasgou muitas páginas permeadas de sentido. “Eu escrevo demais e rasgo demais”. Mas certas criações o criador não é capaz de se desfazer: “Rupert eu escrevi quando tinha 24 anos e não consegui rasgar”, declara sobre seu último romance publicado em 2008, Jornada com Rupert, que fala sobre os imigrantes alemães em Blumenau no século XIX.
Salim Miguel está sempre atento a tudo e a todos. Muitas de suas histórias – o escritor já soma mais de 30 livros publicados – são narrativas a partir de momentos e vivências do próprio autor. É esse o caminho de A voz Submersa, que mescla duas situações vividas por ele: uma vizinha que se deslocava ao seu andar para conversar com a mãe no telefone em alto e bom som; e o traslado do corpo de um estudante assassinado. O romance Nur na Escuridão – pelo qual recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo melhor romance de 1999, e o Prêmio Zaffari & Bourbon da 9º Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo – conta a história de uma família que vem do Líbano para o Brasil. Sua família. Por isso o autor afirma, com muita convicção, que “nada sai do nada”: “Um texto literário não tem nada a ver com a realidade, embora se baseie na realidade”.
Casado com Eglê Malheiros, primeira mulher a se formar em direito no Estado, Salim refere-se a ela constantemente enquanto fala sobre sua vida e suas obras: “Ela é de muito mais abrangência cultural do que eu”, declara. Eglê também foi presa durante o regime militar, pelo fato de ser comunista. E foi nos 48 dias de prisão que o escritor libanês diz ter conhecido melhor o “bicho-homem”: “Porque caráter, critério, ética, vem de dentro das pessoas, independe de religião, partido político”. E a partir dessa experiência lançou o romance Primeiro de Abril – Narrativas da Cadeia.
Salim Miguel ainda tem fôlego para mais narrativas. Planeja lançar no final deste ano outro livro, e pretende conseguir, em um ano, financiamento para um filme adaptado do romance Nur na Escuridão. Sentado em uma sala de aula, rodeado por alunos, Salim sente-se muito tranqüilo para contar suas histórias. Deixa transparecer uma vontade de contar mais do que lhe é perguntado. E deixa a certeza de ser nur, luz, no âmago da literatura catarinense.
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