sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

RG: 1576995-0

Por Karen Koerich Gerber

A história de Nelson Isauro de Oliveira Neto, RG: 1576995-0, um intrigante comunicador, um morador da Ilha de Santa Catarina, um futuro com teto

Era uma casa muito engraçada, só tinha teto e uma parede. Era aberta para todos os passantes e visitantes, um lugar sem número do centro de Florianópolis, para ficar mais fácil: na rua Deodoro, numa marquise qualquer para alguns, lar para outros. Sem endereço, Nelson Isauro de Oliveira Neto é uma dessas pessoas que muitos passam e não vêem; não porque o julgam como um ser diferente, mas por ser igual a tantos outros que são ignorados todos os dias. No entanto, ele é um cidadão à parte, além de artesão, um ótimo comunicador, o que o torna cada vez mais visível, pois, segundo Nelson, invisíveis são os que não sabem se expressar, e ele com certeza sabe.

Com muita simpatia e sem medo Nelson me convida para entrar e é muito receptivo. Estranho como a cada poeirinha que parece invadir seu espaço é expulsa em poucos segundos. A preocupação constante com o que está a sua volta lhe dá um olhar vago, carregado de lembranças e sonhos, mas a vontade de contar a sua história é grande e por isso ele continua, pensando em cada palavra que deve ser dita e como narrar fatos tão desconexos, verdadeiros ou não, não cabe a ninguém julgar e sim conhecer a atmosfera de um morador fora dos padrões da normalidade para muitos outros moradores de Florianópolis.

Gaúcho, veio para a Ilha aos quatro anos de idade, separado dos pais, morava na barra da lagoa, trabalhava e morava por lá, até que... Essa é a primeira versão, na segunda ele veio com o pai e foi apenas separado da mãe, pessoa que ele nunca mais ouviu falar. Mas o importante é que enquanto morava aqui na Ilha, Nelson não deixou de aproveitar o tempo livre do trabalho para estudar, fez até a 8ª série no Rio Vermelho. “Abandonei o colégio no ensino médio porque os professores querem nos ensinar coisas que não são tão importantes para a vida”. Mas como é a vida... Com 17 anos ele resolveu pegar uma carona, dessas sem rumo, e foi parar no Rio de Janeiro, na Cidade Maravilhosa. Pela intensa convivência com turistas estrangeiros, aprendeu até um segundo idioma, o inglês. Por lá ficou até os 23 anos, prestou serviço militar e prefere não dizer onde morava, mas afirma que mantinha diversos romances e com a vida diferente da que levava em Florianópolis acabou parando no mundo das drogas.

Outros problemas ainda acabaram levando-o para Santos e depois o trazendo de volta. Novamente ele voltou a morar na capital de Santa Catarina. “Essa cidade me acolheu, sou muito feliz aqui, e eu nunca faria nada de mal para esse lugar. Estou afastado do tráfico de drogas”. Por isso aqui ele nunca teve problema com a polícia – não menciona se os teve ou não no Rio – mas afirma que quem tem problemas dessa ordem é porque algo de errado fez.

Quando voltou foi acolhido pela família paterna “Não agüentei as atrocidades cometidas pelo meu tio com a minha tia. Eu sou digno e essa história de livre arbítrio me deixa indignado, pois o livre arbítrio não nos dá o direito de cometer o mesmo erro diversas vezes. Eu cheguei a denunciar o meu tio, mas minha família voltou-se contra mim”. Sem peso na consciência, resolveu deixar a casa e há dois meses voltou a ser morador de rua. “A mente humana é como um papagaio, se você lê muitas coisas ruins ou vê muitas coisas ruins, acaba repetindo tudo e eu não queria nada daquilo pra mim”. O grupo no qual hoje Nelson convive é composto por três amigos. Às vezes eles se reúnem em cinco, mas é raro, cada um gosta de ter seu espaço respeitado. “Já morei na rodoviária, na Beiramar, na Agronômica, mas faz uns 20 dias que estou aqui”.

Vergonha? Medo? “Morar na rua é uma necessidade do momento. Não me sinto mal por estar aqui, não quero que os outros saibam por que eu não quero energias negativas, mas não sou um coitado, coitado é um filho de um burro e não eu, isso é só uma fase”. Para aceitar a vida que leva, faz uso de drogas, bebida e cigarros. Afirma beber socialmente, mas isso não é a realidade visível.

Diz também não ter medo, e sim receio de sofrer qualquer uma das atrocidades que vivenciou. “O bom de viver em grupo é que num dia um tem a cachaça, o outro um beck, o outro a farinha e daí nós fazemos a sopa”. Mas se há algum descontrole por parte do grupo, Nelson baixa a cabeça e reza: “Deus, me fazei compreender que todos que estão à minha volta são filhos de Deus”. Segundo ele, essa é a única forma de espantar maus pensamentos e intenções. Afirma que no geral todos são companheiros uns dos outros, mas o clima de um verdadeiro lar faz falta.

No Natal, Nelson quer estar de casa nova. Acredita que cada um tem aquilo que merece, por isso não vai demorar para que seu sonho se torne realidade. Com uma pequena reclamação sobre a falta de assistencialismo por parte das assistentes sociais, ele afirma que o povo brasileiro em geral é muito solidário. Por isso não tem medo do futuro e está fazendo com que tudo conspire a seu favor. “Eu ganho um auxílio saúde de 365 reais por mês (por ser soropositivo) e pretendo alugar um quartinho”, mas isso não é só para atender o seu desejo. “Já percebeu como estou vestido?”, estava todo de verde, inclusive mostrou um presente que ganhou no mesmo dia, um tênis da mesma cor da roupa. “Nada vai tirar a minha esperança”.

Com o cigarro na boca, Nelson mantinha o sorriso tímido e pensamentos secretos sobre o que faria depois que arranjasse um novo lugar para morar, mas naquele momento estava feliz apenas por ter sido reconhecido e contado sua história. Aos 45 anos, ele espera rever a família que deixou para trás, reconstruir a vida e voltar a ver as ruas como um local público e não um canto que tomou como seu.

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