por Laís Campos Moser
Eduardo, morador de rua há 15 anos, fala das dificuldades de
sua situação e conta seus sonhos e ambições.
sua situação e conta seus sonhos e ambições.
Encontrei Eduardo no centro da cidade, ao anoitecer, em baixo de uma grande marquise, em um local pelo qual costumava passar sempre. Nunca o havia visto. Se alguma vez o vi, nunca realmente o enxerguei. Como seria possível? Já que agora parece ser tão difícil esquecê-lo. “Queria ser rico, para ajudar todo mundo”. Pelo pouco que conheci de Eduardo, 36 anos, morador de rua de Florianópolis, talvez essa seja a frase que melhor o define.
Enquanto diversos moradores de rua passam de um lado para o outro, recolhendo papelões deixados pelas lojas nas calçadas, e ajeitando-os entre o chão e a parede do prédio comercial, converso com Eduardo. Estava falando com um morador de rua, Carlos, quando ele chamou Eduardo para conversar comigo, se ausentando. Começamos nosso diálogo, ou melhor, nosso monólogo, pois ele tinha muito a dizer, e eu, muito a escutar.
Parecia não querer parar de falar. Emendava um tema em outro, repetia os mesmos assuntos; eu tinha que estar atenta às pausas de sua respiração para conseguir formular-lhe algumas perguntas. Eduardo é de Caçador, está na rua há 15 anos, e hoje vive na companhia de quatro amigos: “somos andarilhos”, define o grupo.
Estudou até metade do ensino médio e hoje trabalha com pulseiras e chaveiros. “Pintura e letreiro. A única coisa que gosto de fazer é isso”, chega à conclusão. Seu orçamento é complementado por um dinheiro que recebe do governo, devido a um pino que possui na perna direita. Pergunto sobre como é morar nas ruas, já imaginando a resposta. Mas a verdade é que embora Eduardo me responda, e se todos os moradores de rua do mundo também o fizessem, creio que jamais saberia por completo. “É difícil. Para comer você tem que mendigar um prato de comida numa lanchonete. E todo mundo chama a gente de vadio, vagabundo. Roubar a gente não rouba. E quando a gente vai pedir um dinheiro, não dão (...). Pela educação que a gente tem, a gente já pediu ajuda da prefeitura, mas eles não dão. Eu trabalho, ganho meu sustento, faço brincos, chaveiros. Mas queríamos um apoio para sair dessa vida. De repente você passa calor, de repente frio, de repente pega chuva. Como mal. Essa vida é triste”.
Durante nossas quase duas horas de conversa, sobre o que mais Eduardo fala é de seu vício no álcool – e de sua vontade em vencê-lo. “Nunca fui ladrão. Não cheiro, não uso drogas. A única é a cachaça. Sou dependente do vício do álcool. Se eu parar direto, me dá uma convulsão”. Eduardo foi ao médico, para tratar seu vício. Quem pagou a consulta foi sua mulher, de 60 anos, que mora em Porto Alegre, com o filho deles, Lucas, de seis. Com a consulta médica, aprendeu que tem que parar aos poucos. “Se você toma um litro, tome meio e vai diminuindo. Quando você ver, você parou. Vai da consciência”, afirmou. Sua mulher, de Porto Alegre, veio lhe buscar, mas impôs-lhe uma condição: que abandonasse o álcool. “Eu vou fazer de tudo, eu vou deixar a cachaça. Nem que eu sofra, mas eu vou deixar. Eu amo ela”. Eduardo tira sua carteira do bolso e me mostra, quase que com devoção, uma foto três por quatro, preta e branca, de sua mulher. “Ela tem dinheiro, pagou uma consulta pra mim”. No dia seguinte ele teria uma consulta de dentista, paga também por ela, para consertar um dente semi quebrado.
A todo instante Eduardo volta a falar de seu vício. Nessas horas, olha fixamente para o horizonte e afirma que conseguirá deixar a bebida. “A partir de sábado não vou colocar mais um gole de álcool na boca. Eu vou vencer e vou ser feliz. É só eu querer. A sua cabeça é o seu mestre. Se você não tiver inteligência e humildade, você não consegue nada. Faz 12 anos que parei de fumar. Compro para eles, mas não fumo”. Eduardo tira uma carteira de cigarro do bolso, me mostra, e volta a guardá-la. Em outro momento de nossa conversa, um morador de rua veio lhe pedir cigarro. Ele, gentilmente, tirou um da carteira, e deu ao que pedia. Voltou a guardá-la.
Em dado momento da conversa, Eduardo me fala: “Queria ser rico, para ajudar todo mundo. Queria comprar um barracão para botar todo mundo. Mas cada um que se vire, trabalhe, procure sua comida. Nem o prefeito que é prefeito faz isso”. Confesso que antes de me encontrar com Eduardo, estava com receio de me deparar com a agressividade. Mas tudo o que encontrei foi confiança, educação e sinceridade. Ele me conta sobre o que costumam falar dele: “Eduardo, você dom pra ser um padre, um pastor. Não tem ninguém que fale mal de você, você ajuda todo mundo”. Ele olha para um morador de rua, que está bêbado, vestido com roupas velhas, deitado sobre um papelão, ao nosso lado, e desabafa: “Se não é eu cuidar dele, fazer ele tomar um remédio... pesa pra mim, porque é sempre nas minhas costas”.
Conta-me de uma conversa que teve com o Padre Pedro Keller:
- Eu tenho a certeza que um dia você vai estar no altar da minha Igreja.
- Hoje o senhor conversa com Ele. Quem sabe amanhã, eu converse com Ele.
Em determinado momento da conversa, uma moradora de rua, Geni, interrompe nossa conversa, com uma faca na mão, pedindo que Eduardo lhe ajude com algo. Ele me apresenta a mulher, ela me responde com um sorriso simpático e cansado. Pergunto se quer ir ajudá-la. Ele continua a conversa. Diz-me que tem data marcada para sair das ruas. Era terça-feira e, naquele domingo próximo, se mudaria para uma casa alugada, no Estreito. “Domingo vamos alugar uma casa. Vou sair dessa vida; só está dando desgraça pra gente. A prefeitura só quer colocar a gente debaixo do esgoto. Ganho um dinheiro porque tenho pino na perna, por isso tô alugando uma casa”. Sobre Geni, comenta com zelo: “Não vou deixar ela na mão Desculpe a palavra, mas ela não é vagabunda. É uma mulher digna, respeitada. Eu que tirei ela da droga (crack). E eu gosto dela. Eu vou tirar do meu bolso e pagar para ela a casa”.
Eduardo me olha fixamente e afirma gesticulando com as mãos: “Sou um ser humano, você é um ser humano, ela é um ser humano. A voz de você não é sua, é de Deus. Eu já vi nos teus olhos”. Me emociono, ele também. Retira de seu pulso uma pulseira de pedra, cinza escura, feita por ele, e coloca no meu. Pergunto qual seu maior sonho: “Deixar o meu vício e voltar pra minha mulher e meu filho”.
Na semana seguinte voltei ao mesmo local. Eduardo não estava mais lá. Fiquei observando outros colegas conversarem com alguns moradores de rua que ali moram. O movimento na rua era pequeno, pois já eram quase oito da noite. Mesmo assim, passavam algumas pessoas por nós, tentando esconder a curiosidade e o espanto sobre o que fazíamos. Lançavam olhares. Mas tenho quase certeza de que só olhavam porque estávamos ali, falando com eles. E somente por isso, naquele momento, aqueles moradores de rua foram vistos, saindo de sua constante invisibilidade.
Enquanto diversos moradores de rua passam de um lado para o outro, recolhendo papelões deixados pelas lojas nas calçadas, e ajeitando-os entre o chão e a parede do prédio comercial, converso com Eduardo. Estava falando com um morador de rua, Carlos, quando ele chamou Eduardo para conversar comigo, se ausentando. Começamos nosso diálogo, ou melhor, nosso monólogo, pois ele tinha muito a dizer, e eu, muito a escutar.
Parecia não querer parar de falar. Emendava um tema em outro, repetia os mesmos assuntos; eu tinha que estar atenta às pausas de sua respiração para conseguir formular-lhe algumas perguntas. Eduardo é de Caçador, está na rua há 15 anos, e hoje vive na companhia de quatro amigos: “somos andarilhos”, define o grupo.
Estudou até metade do ensino médio e hoje trabalha com pulseiras e chaveiros. “Pintura e letreiro. A única coisa que gosto de fazer é isso”, chega à conclusão. Seu orçamento é complementado por um dinheiro que recebe do governo, devido a um pino que possui na perna direita. Pergunto sobre como é morar nas ruas, já imaginando a resposta. Mas a verdade é que embora Eduardo me responda, e se todos os moradores de rua do mundo também o fizessem, creio que jamais saberia por completo. “É difícil. Para comer você tem que mendigar um prato de comida numa lanchonete. E todo mundo chama a gente de vadio, vagabundo. Roubar a gente não rouba. E quando a gente vai pedir um dinheiro, não dão (...). Pela educação que a gente tem, a gente já pediu ajuda da prefeitura, mas eles não dão. Eu trabalho, ganho meu sustento, faço brincos, chaveiros. Mas queríamos um apoio para sair dessa vida. De repente você passa calor, de repente frio, de repente pega chuva. Como mal. Essa vida é triste”.
Durante nossas quase duas horas de conversa, sobre o que mais Eduardo fala é de seu vício no álcool – e de sua vontade em vencê-lo. “Nunca fui ladrão. Não cheiro, não uso drogas. A única é a cachaça. Sou dependente do vício do álcool. Se eu parar direto, me dá uma convulsão”. Eduardo foi ao médico, para tratar seu vício. Quem pagou a consulta foi sua mulher, de 60 anos, que mora em Porto Alegre, com o filho deles, Lucas, de seis. Com a consulta médica, aprendeu que tem que parar aos poucos. “Se você toma um litro, tome meio e vai diminuindo. Quando você ver, você parou. Vai da consciência”, afirmou. Sua mulher, de Porto Alegre, veio lhe buscar, mas impôs-lhe uma condição: que abandonasse o álcool. “Eu vou fazer de tudo, eu vou deixar a cachaça. Nem que eu sofra, mas eu vou deixar. Eu amo ela”. Eduardo tira sua carteira do bolso e me mostra, quase que com devoção, uma foto três por quatro, preta e branca, de sua mulher. “Ela tem dinheiro, pagou uma consulta pra mim”. No dia seguinte ele teria uma consulta de dentista, paga também por ela, para consertar um dente semi quebrado.
A todo instante Eduardo volta a falar de seu vício. Nessas horas, olha fixamente para o horizonte e afirma que conseguirá deixar a bebida. “A partir de sábado não vou colocar mais um gole de álcool na boca. Eu vou vencer e vou ser feliz. É só eu querer. A sua cabeça é o seu mestre. Se você não tiver inteligência e humildade, você não consegue nada. Faz 12 anos que parei de fumar. Compro para eles, mas não fumo”. Eduardo tira uma carteira de cigarro do bolso, me mostra, e volta a guardá-la. Em outro momento de nossa conversa, um morador de rua veio lhe pedir cigarro. Ele, gentilmente, tirou um da carteira, e deu ao que pedia. Voltou a guardá-la.
Em dado momento da conversa, Eduardo me fala: “Queria ser rico, para ajudar todo mundo. Queria comprar um barracão para botar todo mundo. Mas cada um que se vire, trabalhe, procure sua comida. Nem o prefeito que é prefeito faz isso”. Confesso que antes de me encontrar com Eduardo, estava com receio de me deparar com a agressividade. Mas tudo o que encontrei foi confiança, educação e sinceridade. Ele me conta sobre o que costumam falar dele: “Eduardo, você dom pra ser um padre, um pastor. Não tem ninguém que fale mal de você, você ajuda todo mundo”. Ele olha para um morador de rua, que está bêbado, vestido com roupas velhas, deitado sobre um papelão, ao nosso lado, e desabafa: “Se não é eu cuidar dele, fazer ele tomar um remédio... pesa pra mim, porque é sempre nas minhas costas”.
Conta-me de uma conversa que teve com o Padre Pedro Keller:
- Eu tenho a certeza que um dia você vai estar no altar da minha Igreja.
- Hoje o senhor conversa com Ele. Quem sabe amanhã, eu converse com Ele.
Em determinado momento da conversa, uma moradora de rua, Geni, interrompe nossa conversa, com uma faca na mão, pedindo que Eduardo lhe ajude com algo. Ele me apresenta a mulher, ela me responde com um sorriso simpático e cansado. Pergunto se quer ir ajudá-la. Ele continua a conversa. Diz-me que tem data marcada para sair das ruas. Era terça-feira e, naquele domingo próximo, se mudaria para uma casa alugada, no Estreito. “Domingo vamos alugar uma casa. Vou sair dessa vida; só está dando desgraça pra gente. A prefeitura só quer colocar a gente debaixo do esgoto. Ganho um dinheiro porque tenho pino na perna, por isso tô alugando uma casa”. Sobre Geni, comenta com zelo: “Não vou deixar ela na mão Desculpe a palavra, mas ela não é vagabunda. É uma mulher digna, respeitada. Eu que tirei ela da droga (crack). E eu gosto dela. Eu vou tirar do meu bolso e pagar para ela a casa”.
Eduardo me olha fixamente e afirma gesticulando com as mãos: “Sou um ser humano, você é um ser humano, ela é um ser humano. A voz de você não é sua, é de Deus. Eu já vi nos teus olhos”. Me emociono, ele também. Retira de seu pulso uma pulseira de pedra, cinza escura, feita por ele, e coloca no meu. Pergunto qual seu maior sonho: “Deixar o meu vício e voltar pra minha mulher e meu filho”.
Na semana seguinte voltei ao mesmo local. Eduardo não estava mais lá. Fiquei observando outros colegas conversarem com alguns moradores de rua que ali moram. O movimento na rua era pequeno, pois já eram quase oito da noite. Mesmo assim, passavam algumas pessoas por nós, tentando esconder a curiosidade e o espanto sobre o que fazíamos. Lançavam olhares. Mas tenho quase certeza de que só olhavam porque estávamos ali, falando com eles. E somente por isso, naquele momento, aqueles moradores de rua foram vistos, saindo de sua constante invisibilidade.
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