por Thomaz Alves
Era noite e nós entramos.
Uma porta de madeira velha e desbotada separa o as escadas da sala de exibição. Um profundo breu nos recebe.
Perceba, eu não estava só. Um colega acompanhava-me naquela noite. Ambos tínhamos a mesma missão.
Deveríamos reviver a década de 60.
Em comemoração aos 40 anos do espetáculo teatral “Hair”, o centro cultural Badesc realizava uma sessão da adaptação cinematográfica da peça. E lá estávamos nós para assisti-lo e escrever sobre, adentrando aquela saleta escura.
Quando os olhos se acostumam com a escuridão, percebemos que há várias pessoas paradas em pé e outras circulando pelos assentos. Algumas já estavam devidamente acomodadas. Não reconheci nenhum dos rostos. Não conhecia ninguém dali.
A pequena tela permanecia desligada. Um cisco de luz agraciava a cabeça dos presentes e meus olhos.
O lugar tinha cheiro de coisa velha.
Resolvemos procurar uma poltrona para nos sentar.
A treva já estava menos intensa. Meus olhos acostumaram-se rapidamente a escuridão.
Avistamos cadeiras vazias. Sentamo-nos numa fileira em que havia apenas uma pessoa. Era a última fileira, rente a parede dos fundos da sala.
Não demorou até fecharem as portas.
Desligaram o pequenino facho de luz de cima de nossas cabeças.
A tela do outro lado da sala ligou. O filme havia começado.
Sentado, com as mãos firmes sobre o descanso da poltrona, com pessoas retardatárias tomando sues lugares nos últimos assentos da sala, mergulhei rumo ao desconhecido.
Desconhecido, sim. Jamais havia visto o filme.
E o que eu posso dizer do que meus olhos viram em seguida? O que posso falar sobre o Hair?
Muito mais do eu supunha ser possível.
Não conheço nenhum filme tão completamente rígido e, ao mesmo tempo, tão excessivamente sinuoso.
Hum. Palavra errada, talvez.
Sabe, as coisas que você faz. Onde você faz e você nem mesmo admite que esteja fazendo. Como você chamaria?
Nesse caso específico, eu chamo de anos 60.
Esse é o filme “Hair”. Hair traduz toda essência daquela década. Todos os elementos estão ali.
É um filme sobre mitologia e juventude. Sobre tudo aquilo que surge imediatamente após a imagem de James Dean em Juventude Transviada.
Os anos 50 chegaram ao fim com uma geração de jovens, filhos do chamado “baby boom” que vivia no auge da prosperidade financeira. Viviam em um clima de euforia consumista gerada nos anos do pós-guerra nos EUA.
A nova década que começava já prometia grandes mudanças no comportamento. Ela fora iniciada com o sucesso do rock and roll e o rebolado frenético de Elvis Presley.
O rebolado era o símbolo.
A imagem do jovem de blusão de couro, topete e jeans, em motos ou lambretas, mostravam uma rebeldia ingênua sintonizada com ídolos do cinema como James Dean e Marlon Brando. As moças bem comportadas já começavam a abandonar as saias rodadas de Dior e atacavam de calças cigarette, num prenúncio de liberdade.
No fim, tudo era sobre liberdade.
Os anos 60, acima de tudo, foram a vivencia de uma explosão de juventude em todos os aspectos.
Era a vez dos jovens. Todos influenciados pelas idéias de liberdade “On the Road”, da chamada geração beat, e que começavam a se opor à sociedade de consumo vigente.
O movimento jovem, que nos 50 vivia recluso em bares nos EUA, passou a caminhar pelas ruas.
Novas mudanças de comportamento jovem surgiram, como a contracultura e o pacifismo do final da década. O ano de 1968, rebelde em sua essência, marcaria o questionamento da liberdade, através de exibições sem censura com o sexo e as drogas como principal método de auto-execução.
1968 foi o ano da esperança de um mundo melhor. A utopia de um mundo pacífico e igualitário. Essa esperança não necessariamente afligia ou corria a algum lado da Guerra Fria intensificada.
Os governos norte-americano e soviético viviam um dos mais acirrados momentos de embate da Guerra Fria. Havia a intensa Corrida ao Espaço (cujo real vencedor seria Kubrick), havia a Crise dos Mísseis e, finalmente, a Guerra do Vietnan.
Os jovens tornaram-se mais largados. Largados na idéia de que sua forma de expressão não assumia caráter político. Nenhum discurso era contra algum regime exatamente, e sim contra o “sistema”.
Esse discurso incluía o uso das viagens alucinógenas advindas de drogas com nomes em siglas e as confraternizações cantadas.
A juventude dos anos 60 não temia uma oposição verdadeiramente radical. Não temiam outro jeito de disseminação de ideal. Defendia-o com prazer e em absoluto.
Tudo residia na falta de discursos muito geniosos ou na posse de armas.
Na realidade, é possível perceber certa posição meio socialista. Um socialismo baseado na utopia da igualdade, e não num alinhamento às posturas soviéticas. Talvez, partindo deste ponto ideológico-utópico, existisse até mesmo um arremedo de anarquismo, como desfilariam algumas bandeiras nas grandes reuniões nos parques.
Perceba, no entanto, que a luta era contra a alienação e a falta de individualismo, ambos provocados pelo sistema em vigor. É interessante pensar que o movimento em si, funcionava muito mais como uma forma de fuga, uma alienação do que de libertação. Lutava-se contra algo que eles mesmos faziam.
Seria trágico se não fosse cômico.
O fato é que, com os ideais do movimento, também se formou revoltas nos países vermelhos, como a Primavera de Praga e a Reforma Cultural Chinesa.
Afetou também outros países, dados a revoltas contra o sistema. Em Paris, exatamente em 1968, a reunião estudantil e operária também seria grande pretexto para o idealismo dos jovens da época.
Partindo de motes como “a imaginação no poder” e “é proibido probir” todo o mundo foi alertado, para desespero dos burocratas, que fechariam o poder. E isso iria acontecer aos países socialistas, em que o próprio Mao-Tse Tung voltaria sua posição quando no poder, e Stálin derrotaria Kruschev. Aconteceria também aos países ao redor dos Estados Unidos, como a própria França, e os países latino-americanos tomados por ditaduras militares.
Independentemente de qualquer ideologia política que alguns insistem em levantar para tirar o romantismo e a pureza que se têm em torno da década, os hippies ainda são valorizados quando se olha para a Guerra do Iraque e lembra-se da Guerra do Vietnam.
Essa foi a década de 60. Esse foi Hair.
Isso porque o poder de Hair, com o perdão do clichê, transcende qualquer coisa do que isso.
Mas há algo válido a se dizer aqui: Não sou muito afeiçoado ao ideal, aos hippies, e aos anos 60. Não é a minha época, não é a minha história. Sou um produto do meu próprio tempo. Meu tempo diz que não se muda o mundo com cabelos comprido e frases bonitas. E o diferencial de Hair reside em quebrar algumas barreiras, ao inserir pequenos traços de equilíbrio e falta dele durante a obra.
Não diria que é uma “mensagem” que o filme passa. Diria que é um sentimento bastante acolhedor. E que me deixou modificado ao final de cada sessão.
Aprendi que há questões de equilíbrio a se considerar, quando falamos sobre responsabilidade.
Nós fazemos escolhas.
Mais ninguém pode viver nossas vidas por nós. E devemos confrontar e aceitar as conseqüências de nossas ações.
Ainda hoje vários filmes são feitos tentando resgatar o período ou contextualizados por volta de 1968. Lembre de Bertolucci e seu Os Sonhadores. Lembre de Dennis Hopper e Peter Fonda em Sem Destino. Todos muito bons.
Nenhum tão essencial quanto Hair.
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