sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Três Impressões de Ruas Frias

por Thomaz L. Alves

I


Praça XV.
O desenho do piso parecia uma multidão.
O desenho do piso mudava seu padrão conforma caminhava-se sobre ele.
O desenho do piso era mutante.
Sobre ele, havia árvores. Enormes, pesadas, antigas.
Elas faziam o ar circular, tornando o vento fresco em noite de primavera.
Também havia outras coisas na praça.
Bancos, namorados, pombos. Cheiro de cachorro molhado e mijo.
Um amontoado de pedras, bancos e plantas. Como um anfiteatro ao ar livre.
Ali, sentados com a maior naturalidade do mundo, estavam quatro deles. Os amigos da Praça XV.
Moradores de rua. Sem teto. Mendigos. Vagabundos.
Pessoas.
Todos os quatro, cada qual por seu próprio motivo, moram na rua.
Pessoas que mudaram. Transubstanciou sua vida para algo mais duro.
Viviam uma nova vida agora. Uma vida sobre os desenhos do piso da Praça XV.
Eles, assim como os padrões do piso sobre o qual dormiam, eram mutantes.
A vida imita os padrões.
Tinham um padrão marcado nos corpos.
Era um símbolo. O símbolo da união familiar.
Todos cuidavam de todos.
Uma família que levava o nome de onde viviam tatuado no braço.
Praça XV.

II

Dos quatro que moravam sobre aquele teto feito de estrelas e copas de árvores, a que mais se destacava era Andréia.
Isso se devia ao seu porte físico. Diferente dos demais.
Era frágil.
Corpo extremamente magro, escondido sob roupas pretas e brancas. Cabelos desgrenhados.
Andréia portava em sua boca uma máscara branca. Cirúrgica.
A mulher sofria de Tuberculose. Tinha AIDS também.
Mas gostava de comer cachorro quente.
Falava em corrupção.
Saia pelas ruas para corromper as pessoas.
Era o que ela dizia.
Gíria. Era isso.
Corromper as pessoas, ou seja, pedir dinheiro.
Não necessariamente para comer. Por isso corrompia.
Era para drogas.
O Crack.
Uma pedra por dia.
Sofria uma morte por dia.
Em seu colo, trazia um cão. Era seu “neném”.
Chamava-se coisinha.

O segundo dos quatro era Daniel.
Grande. Camiseta regata. Boné na cabeça.
Era cardíaco. Levava as marcas de cirurgia estampadas em seu peito.
Desconfiava de todos. Todos eram “P2”
Polícia Civil.
Deve ter tido muitos problemas com ela.
Nunca falava dela.
Também nunca falava de si mesmo.
Isso entrava no psicológico. Não era bom.
É o que dizia, enquanto olhava para o céu.
Não sei como o acaso o trouxe as ruas.
Ele era um homem acostumado a manter os pés firmes em sua Terra.
Sua casa.
Á rua nunca havia exercido nenhum fascínio sobre sua pessoa.
Na verdade, o que o encantava de fato era o céu. Mais especificamente, a Lua, que não deixa de ser outra Terra.
Outra casa.
Alguém lhe disse que é sempre noite na Lua.
Lançou-se a rua.

O Terceiro a se notar era David.
David.
Da língua inglesa.
Variante de Davi.
Não se pronuncia davídi. Nem deividi
É Davi.
Foi assim que ele se apresentou.
Davi.
Morador de rua. Sem teto. Mendigo. Vagabundo.
Pode usar a expressão que desejar.
Ele mora na rua. É fato. Ele não nega.
Davi não nega.
Na verdade o nome não vem da língua inglesa. A origem é Hebraica.
O amado.
É o que significa.
Significa outras coisas também.
Segundo o Dicionário de Nome e Símbolos Chevalier:
“Muito atencioso, e apegado à família, possui um senso protetor muito forte. É o tipo de pessoa que gosta de se sentir útil e necessário. Chega a assumir mais responsabilidades do que realmente pode suportar. Não costuma voltar atrás em suas palavras. Muito ocupado, raramente se permite algumas horas livres para o lazer. Mas deve tomar cuidado em não se tornar dependente ou infantil ao extremo.”
Chevalier tinha razão.
Assim era David. Ao menos, foi a impressão que passou.
Era o líder nato dentre os quatro.
Na realidade. Cuidava de orientar a todos ali.
Cuidava de Andréia, a quem chamava de fininho. Era sua mulher.
Também usava drogas.
Esse foi o motivo de ir para as ruas.
David era formado em veterinária.
Era o que ele contava.
Teve uma época em que foi um sujeito muito violento.
Não era mais. Mudou.
A rua o deixou mais sereno.
Mas das crises de abstinência não se livrava.
Seus dias são batalhas travadas com uma parte de si mesmo.
Sua tentativa de tentar controlar e minimizar o efeito da droga sobre si mesmo.
Mas nem sempre funcionava.
Sempre chega como um flash.
Inesperadamente. Apenas mais obscuro, abstrato.
Tremedeiras rápidas, intensas.
As mãos tremem.
Tudo se mistura e tudo se confunde.
Colapsos.
Somente a droga cura.
David só tem 36 anos.

Por ultimo, o quarto integrante da família.
Dona Loreta. 56 anos.
Foi o que David disse.
Ele era seu filho.
Loreta dizia que a idade não importava. A cabeça sim. O bom coração também.
Ela não gostava de dizer a idade. Parecia ter bem mais idade do que realmente tinha.
Não gostava de outras coisas além da idade.
De fotos, por exemplo. Nem de falar.
Um pouco de timidez natural. Um pouco de vergonha por sua situação.
Ela também não se importava muito consigo mesma. O coração era maior.
Suas roupas eram sujas e manchadas. Cheiravam a fezes.
Mas gostava de cachorro quente. Igual a Andréia.
Para elas, cachorro quente tinha gosto de quero mais.
Dona Loreta tinha uma história peculiar.
Possuía sua própria casinha em Curitibanos.
Interior do estado de Santa Catarina.
Era longe.
Seu marido era agricultor.
Ela também deveria ser. Não confirmava isso.
Largou tudo e foi atrás do filho quando este rumou para a rua.
Fugiu para a rua, melhor dizendo.
Agora ali está.
Reclama que o filho não se importou com a família de sangue quando foi para a rua.
Reclama que ele se importa com a mulher.
Andréia.
Reclama que ele se importa com o amigo.
Daniel.
Mas não se importa com ela. Com a idade dela.
Não se importa com o seu amor de mãe.
Sua única saída é a fé.
É a crença.
A crença em dias melhores. A crença em salvar seu filho.
David.
O Amado.


III


A estrada.
A estrada é o caminho onde só as hienas se arrastam entre cinzas e poeiras.
A estrada é o caminho percorrido para se chegar até a realidade.
A realidade são as ruas.
Quando se caminha pelas ruas, não há hienas.
Existem os perdidos.
Aqueles que mesmo cercados pela multidão estão invisíveis.
Percorrem as ruas da cidade como se fossem estradas desertas. Aqueles que farejam com seus focinhos entre a poeira e a desolação.
Os miseráveis parecem estar em outro tempo, vivendo uma espécie de calamidade pós-apocalíptica.
Imagino que esses homens, mulheres e hienas vivem no futuro e é para lá que vão todos os que percorrem as ruas.
Ao menos, neste futuro, existem as famílias.
Para cuidar.
Existe o amado.

Um comentário:

  1. "O Amado": provavelmente a tirada mais brilhante do blog inteiro. Esse modernismo de crueza+poesia 'inda assoma-me lágrimas aos olhos.

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