sábado, 5 de dezembro de 2009

QUANDO OS OUTROS VÃO PRA CASA

por Luiz Felipe Bianchinni


Sento. Espero. Pessoas andam, correm. O vento sopra rápido, as folhas se mexem. Parece que vai chover, mas não chove. O cheiro de chuva chega antes da própria chuva enquanto as luzes da cidade vão se apagando lentamente. Aos poucos os barulhos dos passos rápidos e atrasados vão diminuindo, o silêncio pouco a pouco começa a aparecer. E é nesse momento, quando a luz acaba, que começo a perceber outro universo no Centro de Florianópolis. É quando o silêncio aparece que se vê uma outra realidade, uma realidade crua, invisível e calada.

Quando a luz verde da figueira começa a ficar mais forte começo a ver pessoas que não tinha visto antes naquele lugar. Pessoas que dormem, amam, comem, bebem e fumam seus cigarros em torno da Praça XV. O centro da cidade parece outro, e quem o habita também. Na verdade, não sei se essas pessoas estavam escondidas enquanto era dia ou se o movimento e o ritmo acelerado da capital escondem-nas. Junto desse cenário de penumbra, de cheiro de chuva, cachaça e roupa molhada está o medo e o que se esconde. Ali, na noite, na sombra do que é a cidade, na sombra do que restou do dia, eu vi naquelas pessoas um pouco de mim e do que aparece em mim quando está escuro.

Procuro alguém para conversar, ando ao redor da cidade e encontro Nilson Calo Rosa, de 52 anos, que vive há 30 na rua. Pergunto se pode conversar e ele logo diz que sim e oferece seu papelão para que eu sente ali com ele, eu sento e continuo conversando. Entre um cigarro e outro, revela-se aos poucos e mostra suas contradições, seus medos, sonhos e insatisfações.
Ele diz que está na rua porque gosta, que não nasceu para viver em gaiola. Nas ruas ele se sente um passarinho solto. Fala que sempre ficou mais na rua do que em casa e desde criança já sonhava com a liberdade das ruas.

Nilson diz que acorda todos os dias às 7 da manhã pra ir trabalhar de guardador de carros na rodoviária, onde fica o dia todo. Para tomar banho usa a própria rodoviária ou uma torneira na rua mesmo. Conta que sempre tem alguém que oferece comida para os sem-teto. Muitos grupos religiosos espíritas, evangélicos ou católicos trazem alimentos.

No terceiro cigarro, ele conta sobre seus medos e sobre o que acontece na madrugada das ruas da cidade. “Já vi gente ser esfaqueada do meu lado; daí tu olhas e fazes de conta que não está olhando,” conta Nilson. Para ele, que não gosta de confusão, a melhor opção é fingir que dorme quando está em uma situação de risco.

Ao falar de experiências com drogas afirma que se tornou um usuário ainda adolescente. Foi usuário de cocaína por 20 anos, mas já parou com a droga. Hoje usa crack às vezes para dormir, pois tem muita insônia, e bebe esporadicamente também... “De vez em quando tomo uns golinhos, mas tudo é prejudicado quando bebo. Agora eu tô a quatro ou cinco dias sem beber”, conta.

Logo depois, Nilson conta que é HIV, que pegou o vírus em relações sexuais com mulheres na rua. Conta que é preocupado com a saúde, que toma o coquetel e só transa com camisinha. Diz que muita gente não chega perto dele por medo de contaminação.

“Não volto pra casa porque não é espaço pra mim. Meu lugar é na rua”, afirma Nilson. Se de um lado está o homem que se diz livre dos padrões tradicionais de modo de vida, de outro está a solidão. Quando a chuva começa a cair mais forte e romper com o silêncio da noite no centro da capital, ele se revela mais e em algumas lágrimas mostra o preço que paga por essa “opção”.

Ele conta que perdeu a esposa há 10 anos e que desde então vive nas ruas. Quer dizer, diz que já “vivia” nas ruas antes, mas depois do falecimento da mulher resolveu entregar sua vida para a estrada. Nilson diz que se arrepende dos momentos em que maltratou sua família por causa da bebida, diz que carrega consigo essa culpa.

Teve dois filhos, que hoje são casados, trabalham e que não vê há 10 anos. Conta que os filhos se esqueceram dele mas que ele os guarda no coração. Pergunto a ele se não pensa em procurar os filhos e responde que não, que não será bem recebido. Nesse momento, seca as lágrimas que se formam nos olhos: procurar os filhos parece pior do que a dor que carrega consigo. Parece não acreditar em uma reconciliação.

“Cada ano aqui corresponde a cinco”, desabafa Nilson. Ao final da conversa, revela estar cansado de tudo isso e que tem vontade de sair das ruas. A preocupação parece ser com o cotidiano, como o que vai comer no dia ou aonde dormir. Ao perguntar sobre seus planos para o futuro, disse que gostaria de comprar ou alugar uma casa onde pudesse morar.

A noção de tempo para quem vive na rua me parece ser outra. Tenho a impressão de que os moradores das ruas vivem em um outro ritmo, diferente dos que estão na correria do mundo capitalista. Não que não estejam neste mundo ou não componham nossa realidade, entretanto, percebo em seu modo de vida uma opção. O homem é produto do meio social, entretanto, parece-me que as pessoa que vivem nas ruas se opõem de certa forma aos padrões e estereótipos tradicionais. Não sei quem é mais livre, se o jornalista que deve terminar esta reportagem ou o entrevistado. O que percebo é que a penumbra da noite faz com que os dois, através de uma conversa franca, desnudem-se por alguns instantes e mostrem as verdades humanas que restam quando as luzes são apagadas e os outros vão embora.

5 comentários:

  1. Esse final do bianchini ficou estranho...

    Desnudem-se, mostram verdades humanas quando as luzes são apagadas...

    hummm.
    uahuahua
    PV

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  2. É uma metáfora, espero. Porque Gripe Suína & AIDS no mesmo ano ia ser má sorte demais para um só artista.

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  3. com certeza...
    essa vida alternativa do bianchinni ainda o mata

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  4. Metáfora, certamente.

    Mas esse comentário do PV ai de cima...
    uhuhuhuhuhuhuhuhuhuu

    gênial...

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  5. obrigado pelo genial Thomaz...
    auhauhauhua
    PV

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