sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Senhor das Histórias



Por Douglas Bianchini

Minha casa não tem paredes, meu teto é feito de papelão, a luz que ilumina minhas noites vem do poste bem aqui em frente. Sou um morador de rua. Sou mais um desses tantos outros humanos que vivem nas ruas. Estou aqui por que optei por estar. Meu endereço, se é que assim posso falar, é uma das ruas mais conhecidas de Florianópolis. Moro, ou melhor, durmo, quando consigo, debaixo de uma marquise na Rua Deodoro. Quase todos os dias venho para cá, pois como costumo andar pela cidade. De vez em quando me empolgo e vou longe. Aí durmo por lá mesmo e no outro dia volto.

Já faz uns doze anos que vagueio pelas ruas da linda Florianópolis de outrora, eu a vi crescer, modificar-se e, acima de tudo, e pra todas as dúvidas mudar pra pior. Tenho saudades do tempo em que o mar batia no Mercado Público, os barcos vinham de todos os lugares até aqui trazer peixes, do tempo em que passava carro na Hercílio Luz, que as pessoas desciam de seus prédios na Beira-Mar e sentavam-se na areia pra ver o pôr-do-sol.


Meu caminho, traço como posso, estou e assim sou feliz morando na rua, não posso reclamar, escolhi viver assim e até acho que não consigo mais viver sem essa liberdade. Você sabe o que é? Do muito de tudo um pouco que conheço, liberdade quer dizer ousadia, coragem, franqueza e demasiada familiaridade. Gosto da vida que levo, por mais que de vez em quando ela me dê um susto. Hoje aprendi a viver sem reclamar, se sou soropositivo é por que Deus quis assim. Ele não dá asas pra quem não sabe voar, ou uma cruz mais pesada do que a pessoa consiga carregar. Ainda não morri por causa disso. E nem vou. Tomo os remédios, que consigo com as assistentes sociais. Acho que vou morrer por causa do cigarro. Tem um? Obrigado! Apenas sigo meu caminho.

Eu peço a Deus todos os dias que proteja todos nós antes de me deitar, não sou egoísta, tenho que pedir por todos. O que não me falta é fé. Todos aqui são como eu, além do pedaço de papelão que durmo em cima não tenho nada, assim como os outros. Eles são como eu, por opção ou não, se tinham ou não família, casa, carro ou dinheiro, são humanos que hoje vivem nas ruas. Eles são meus amigos, dividem muitas vezes o pouco que têm, suas histórias, e por isso sou grato a eles e a todas as pessoas que me dão alguma coisa. Nunca precisei roubar na rua. Tomo banho na rodoviária nos dias que tenho dinheiro pra pagar. Comida eu consigo sempre em dois restaurantes, e todos os dias alguém passa por aqui e me deixa bolacha, leite, até chocolate já ganhei. São pessoas especiais e com certeza Deus olha pra eles com ternura e retribui tudo o que doam.

Família. Casa. Passado. Não gosto de falar muito disso. Mas o dia em que saí de casa, esse provavelmente, quer dizer, com certeza, nunca esquecerei. Era um dia como qualquer outro dos últimos dois anos. E já faz tanto tempo que nem me recordo direito. Uns dez, doze ou quinze anos. Algo me dizia que naquele dia minha vida iria mudar. Acordei, tomei meu banho. Pra curar, ou amenizar digamos assim a ressaca do dia anterior, e de tantos outros. Fui ao meu escritório, trabalhei por algumas horas. Depois saí e fui ao bar de todos os dias; lá bebi como sempre nos últimos dois anos. Todos me conheciam e já sabiam o porquê de beber todo santo dia. Quando já não me agüentava mais fui pra casa. Até fui, parei na frente e resolvi não entrar. Dei meia volta e passei minha primeira noite na rua. Por que comecei a beber? Não sei ao certo... Motivo? Minha mulher me abandonou e levou meus filhos...

Talvez fosse por isso. É foi. Eu tinha casa, bem ajeitadinha até. Era bem localizada. Foi o que meu trabalho conseguiu pagar. O tempo foi passando e eu cada vez mais preferia ficar bebendo. Abandonei meu trabalho. Vendi minha casa e metade do dinheiro dei pra “vaca” da minha mulher, desculpa a expressão. A outra gastei nem sei em quê. Eu ajudei a construir essa cidade, eu trabalhava na prefeitura. Sou engenheiro formado. Não lembro se tenho cinqüenta ou cinqüenta e um anos, não sei e também não quero rever meus filhos. Pra que? Sei que estão bem e isso já basta. E também já faz uns doze anos.

Nunca me esqueço da primeira vez em que passei a noite acordado depois que vim pra rua. Não consigo dormir muitas noites, sabe!? São poucos os momentos em que consigo dormir à noite. É por medo, mas não de medo de violência. Medo dos fantasmas do meu passado, que de feliz teve pouco. Sou mais feliz aqui.


Lembro-me da infância. Manjericão me faz lembrar o gosto; o cheiro traz lembranças da minha mãe, que costumava fazer um bom macarrão com molho de tomate, manjericão e frango nos domingos. Reunia a família e todos almoçavam em harmonia. Comecei a trabalhar cedo, meu pai era pescador, quase nunca estava presente. Mas uma coisa ele me ensinou e desde então por anos levo comigo esses simples ensinamentos de lutar pelos meus sonhos. Um cara muito mais esperto que todo mundo aqui disse uma vez: “Pouco se aprende com a vitória, mas muito com a derrota”.

Tudo o que eu acabei de dizer, pode ser verdade ou não? Aliás, nem sei se tive mesmo esta conversa...? Pode ser invenção minha; talvez uma fantasia que tive? Tanto pode ser um simples devaneio, resultado da garrafa de cachaça comprada por um real e cinquenta no boteco perto do terminal que acabei de beber e esta aí jogada, vazia ou a mais simples verdade. Acreditem se quiser essa é minha vida, minha história inefável, meu passado, meu cotidiano, minha cruz, minha realidade. Meu nome é Nilson Rosa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário