sábado, 5 de dezembro de 2009

Meu endereço é a rua

por Luiz Carlos Padilha



“...assumindo plenamente sua inarredável condição mortal, aceitando em decorrência a angústia que só poderia ser dissimulada através da banalidade cotidiana.” Heidegger

Terça-feira 24 de novembro de 2009. Hoje, Rodrigo Cardoso Silva completa 30 anos. Por dez anos foi casado. É pai de uma menina de sete anos e há três deixou a família em Canoas, Rio Grande do Sul, para morar nas ruas. O motivo, ele não revela, mas dá uma pista: “O que os olhos não vêem o coração não sente”.

Depois da separação da mulher, resolveu cair no mundo e cultuar as ruas. Dormindo na calçada, sob um toldo de lona, em frente à garagem de uma casa fechada, na esquina da Rua Victor Meireles com a Rua General Bittencourt, no Centro de Florianópolis, Rodrigo é uma figura conhecida na área.

“O livro do mundo é a rua. As ruas são a escola do mundo. Aprendi muita coisa, muito rápido. Conheço centenas de pessoas por dia, de outros estados e até do estrangeiro. Sou carismático, trato todo mundo bem e com respeito”, diz, sorrindo e me olhando fixamente.

Nas três vezes que conversamos, pude constatar um pouco desse carisma. Alguns moradores e pessoas que trabalham em repartições, bares e restaurantes das redondezas, o chamam pelo nome, o cumprimentam e lhe pedem pequenos favores, como comprar cigarros, boletos de estacionamento, descarregar mercadorias e outros afazeres.

“Moro na rua, mas não sou vagabundo não, ‘doutor’. Aqui eu trabalho e ganho meu dinheiro sem precisar pegar o que é dos outros”. Continuamos a conversa. Descubro que Rodrigo é mais um desses jovens que saíram de casa forçados pelo conflito interior gerado pelo uso de drogas. Sobre a vida que leva, dá um sorriso tímido, demonstrando certa agitação nos gestos, como que incomodado com o que vai dizer.

“Estou na rua porque é melhor pra mim. Eu fumo crack e não quero incomodar minha família, aqui não tem pegação. Não sou viciado, sou cabeção, uso dose alta, mas quando acabou não corro atrás”, revela.

Pergunto se deseja parar com o consumo de drogas. Diz que já tentou algumas vezes, até voltou pra casa, ficou alguns dias, mas depois retornou às ruas. “Usar é muito mais barato que se tratar”, diz ele com seu jeito afetuoso e olhar calmo.

“Aqui acontece de tudo, ‘doutor’. Outro dia, teve um bacana, de madrugada, que me levou pra casa dele. Tomei banho, comi, bebi e depois deixei o cara lá, peladão, e me mandei”, conta, rindo-se.

O desafio cotidiano, porém, não é nada engraçado. Nos dias de calor, ele se lava em uma torneira pública, na avenida Hercílio Luz. Quando precisa usar banheiro, recorre a uma estrutura pública da Praça XV, ao preço de 50 centavos. O banho, uma vez por semana, é na rodoviária Rita Maria, isso quando arruma quatro reais para pagar o chuveiro. “Duro mesmo é no inverno ou quando está chovendo... As roupas ficam molhadas e faz muito frio”, confessa.

Assim como a história de Rodrigo, existem muitos outros dramas envolvendo álcool, drogas, prostituição e abandono, que acontecem por problemas de desestruturação pessoal ou familiar e acabam empurrando adolescentes, jovens e adultos para a condição de moradores de rua.

Afastados da cobrança dos familiares e absorvidos pela indiferença da sociedade, sem nenhuma proteção social, travam uma batalha diária pela sobrevivência. Mesmo que aparentemente não demonstrem, os moradores de rua levam uma vida marcada pelo sofrimento e pela vulnerabilidade física constante. Uma luta diária que exige estratégias engenhosas de sobrevivência.

A estratégia psicológica encontrada por Rodrigo é o de se anestesiar, rir e tirar onda da própria situação em que se encontra. Por quanto tempo ainda, ele não sabe, mas acredita que algum dia possa vencer o vício e então levar outro tipo de vida.

“A vida pra mim é um videogame. Pra evoluir no jogo tem que passar de fase. Ganhando essa fase, quero partir pra outra, sem uso de drogas. Vai ser difícil, mas as pessoas são aquilo que pensam que são. Os pensamentos positivos atraem forças positivas”, filosofa meu entrevistado.

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