sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Um Esboço de Sob Figueira

por Maurício Chichôrro Schütz

Há David, Daniel e Lorita. Houve também Jefferson e Andréia, e, por alguns dias, Índio. Costelinha, Pulga, Neturno, Coisinha, entre outros, moram também - e comem a mesma comida, dividem o mesmo teto, apesar de serem cachorros. Lorita é mãe de David e é David quem cuida deles todos. Todas as histórias convergem para esse mesmo lugar, e desse lugar elas se separam: a Praça XV de Novembro.

Quando nos conhecemos, Jefferson já tinha sido deixado pela mãe ali mesmo - pôs o filho sentado num dos bancos, avisou que ia buscar sorvete e ele nunca mais a viu. Com oito anos, o mundo era dele e ele era de ninguém - e agora 'tava detido no 1° DP por conta de uma briga. Daniel tinha saído de casa, que ia ficando cheia e tumultuada por uma multidão de oito, faltava comida, os irmãos eram menores. Coube aos mais velhos se virarem sozinhos. Já tinha cheirado cola e parado, usado cocaína e parado, injetado heroína - uma vez só e errado, por desconhecimento de método, adormeceu o braço e doeu demais, daí nunca mais -, mas do álcool ele não se livrava (nem parece querer). Andréia já era marcada pela AIDS e pela tuberculose, já ia magra e enfraquecida, viciada em crack; mas um dia ela foi bonita, diz, quando o cabelo era bem cuidado. David já tinha o número XV tatuado no peito e se formado em veterinária; Dona Lorita 'tava só de passagem: tem casa, não dizia onde, e marido. Veio atrás do filho, e só, numa empreitada sem frutos.

Primeiro, há de se dizer: não são mendigos, mas Moradores de Rua. A diferença entre um e outro? Todo um léxico de dignidade. Daniel, de boné e roupas largas, um crucifixo grande no peito, joga olhares enviesados: "Tu tem cara de Civil". Dona Lorita, de olhos de um brilho rico que despontam da pele enrugada, não quer que tirem fotos: "Eu não moro na rua, eu estou na rua. Não serve tirar foto de mim e pôr na televisão, porque eu não moro aqui". Andréia nós quase perdemos quando viu um gravador: "São um bando de corruptos!", ria-nos - mas a polícia nos tomou ela antes da segunda visita, dali pro Presídio Feminino.

A desconfiança e o preconceito se unem. Da polícia, o grupo nutre um asco muito justo, quando numa semana eles já eram dois menos – entre as conversas, cruza uma viatura e, antes mesmo que se veja, é cachorros contra o carro; a voz de David, áspera, ressoa “Fura o pneu deles!”; nem é sério, mas vale o esforço. A rua ensina a dormir com um olho aberto - há vezes em que olho é o cachorro, às vezes é o seu próprio – e a desconfiar de tudo, porque tem maldade que só é: a briga que levou Jefferson foi assim. Vem um homem, recém solto da cadeia, todo cheio de si; entra na casa dos outros e desrespeita a família. O que eles poderiam fazer? Logo antes da nossa chegada, levam “o grandão” embora. De Samu. “Briga boa mesmo, de verdade mesmo, é briga de rua. É pior que vale tudo”, Daniel conta.

Pelo mesmo motivo é que dona Lorita decide que vai embora, para a casa que ninguém sabe onde fica. Ela não pode viver ali, no meio desse terror: entre as garrafadas e socos, entre homens que parecem procurar a morte, tirando sangue um do outro. Ela ama o filho, é claro, e não queria que ele ficasse lá – a outra filha já tinha casado, tinha dado um neto até, tinha casa e todas essas coisas ortodoxas -, mas desse jeito não tem como. David, o filho, quer distância; brigou com a mãe uma outra vez e não aguenta mais nem ver dela a sombra, “Que ela vá embora e me dê tranqüilidade!”. Os dois, juntos, contam a história do Rancor: “Ela me abandonou e me deixou, eu tive que me virar sozinho. Ela fez da nossa vida um inferno; tudo por causa de um homem que agora deixou dela. Cuidou de todos os filhos, menos de mim, e vê agora quem é que cuida dela? Eu. Nenhum dos outros que tiveram tudo: eu”. A História é feita dessas coisas, os pedaços que vão se sobrepondo um a um, as verdades que surgem – Dona Lorita é de Curitibanos: “Ele falou para vocês, não é?” -, e as mentiras que eles constroem; mas o que se pode dizer, quando nas mãos se tem, se não a verdade, toda a infinitude palpável de seus delírios?

A verdade é que, no fim, deles só se leva um gosto, um cheiro, um relance: David transmutando-se da eloqüência de um homem livre ao corpo espasmático, rosto etéreo, olhos quase fechando de um abstêmio sem sua dose, como que com frio nos quase trintas graus de fim de primavera, ou Daniel cobrindo o rosto com o boné em pose para foto. Mas uma verdade maior, num súbito relance, se descobre: vendo as cinzas consumidas de um jornal, o papel já negro e retorcido, apenas alguns pontos ainda incandescentes, Daniel e David nos esquecem: “Não parece a cidade vista do morro?”, “É, parece sim”; “Viu? É assim que a cidade parece lá de cima, de qualquer um desses morros”, nos diz Daniel, “Morro da Cruz, Morro da Caixa, Morro do Vinte e Cinco”. As nossas cidades são muito mais deles, com seus tetos de firmamento, chãos de barro e quartos de litoral.

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