sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Ao me aproximar descobri




por Alessandra Oliveira

Quem é ela? O que carrega enrolado naqueles panos? Um bebê? Logo pensei... não pode! Como alguém mora na rua com uma criança? Curiosa disparei em sua direção. Ao me aproximar descobri, era um cãozinho. Um filhote de vira-latas. Coisinha era o nome do ser, quase humano, carregado no colo de Andréia. Como um filho, a moradora de rua acalenta seu mais recente melhor amigo. Embora a humana da cachorrinha estivesse malcheirosa, a cadelinha exalava perfume. Os animais, se é que se pode chamá-los assim, são os cobertores no inverno. O melhor casaco de pele para esses moradores do sereno. Além de pêlos, o sangue das veias distribui o calor quando todos se amontoam.

Enquanto esconde um lanche no local mais seguro, o estômago, a garota de 27 anos conta sua história. “Estudei a terceira série tia. Mas esqueci como é que se calcula o tempo. Já não sei há quanto tempo estou na rua”. Ao tirar a máscara clínica usada para pedir dinheiro a moça de silhueta esguia pelo uso crack, afasta o rosto para tossir. Portadora de HIV e tuberculose, Andréia não deseja a doença para seus visitantes. Rodeada por um grupo de amigos quadrúpedes, Déia, como passo a chamá-la, apresenta seus parceiros. Eles aparecem um a um ao serem chamados pelo nome. Pulga, Costela, Menina, Biliquinho, Bonitcha e Negão, chegam abanando o rabinho como que perguntando o que sua humana deseja desta vez. E para todo lado que Déia se locomove, a turma a segue. “Esses são os verdadeiros amigos. Quem acompanharia um pobre e sujo até debaixo de chuva?”

E a fome é uma concubina neste lugar? É sim. No entanto é possível afastá-la a cada dia estendendo a mão aos transeuntes. Muitas vezes os invisíveis conseguem reter a atenção dos passantes, e deste modo obter umas míseras moedinhas. Todo dinheiro é reunido com muita disciplina. O vício exige, tem seu preço e cobra caro, muito caro. A fome não obrigaria à “maguiá”, (pedir) o crack ordena. Uma mísera pedrinha, do tamanho de um dente é o suficiente para um dia se sossego. Do pedaço de antena de rádio, entupido com uma pequena porção de fios de aço, sai a fumaça poderosa, que alivia ânsias de horas e horas. O cachimbo improvisado produz a névoa necessária para quem um dia resolveu se aproximar de seu inebriante poder. Déia afirma que não costuma beber a não ser quando inala. E já que o faz todos os dias... um gole aqui outro ali faz parte do ritual.

E amor há na rua? Ela garante que onde há “tóchico”, há amor. Sem a droga as brigas sobressaem e o que sobra são as cicatrizes dos gargalos de garrafa. Paus e pedras não são dispensados se estiveram por perto numa hora de fúria. Marcada no braço pela última briga, Déia avisa que também deixou uma grande cicatriz no companheiro. Juntos na rua há muito tempo, os dois dividem a atenção dos cães, a comida, o cobertor... e seus corpos. O leito de ambos é o mármore do coreto da Praça XV.

Mãe de um garoto de 12 anos Andréia se diz satisfeita com a escolha da rua. Seu filho está com a avó. Livre, sem horários, nem contas, sem preocupações com o trânsito ou com datas, sem e-mails para responder a garota pode ter uma vida que não é nem de longe o que uma mãe desejaria para um filho, mas, é o uso que a jovem faz de seu livre arbítrio. Por que olhar de canto ou fingir não vê-los? Acaso alguém deixa de ser gente por não tomar banho ou pagar impostos? Bobagem!

Minha amiga se diz feliz na rua e conta que ali aprendeu a cozinhar feijão, galinha e fritar ovos. “O David cozinha bem. Ele pega qualquer uma pelo estômago”, garante. Na hora da foto, Déia se preocupa com o cabelo despenteado. Talvez a última vaidade da moradora externa.

Andréia não escapou de uma desvantagem das pessoas ditas comuns... ter uma sogra. A mãe de David, dona Lorita conta que resolveu passar um tempo na rua para resgatar o filho. Ainda que tranqüila ela é a sogra, um estereótipo social. Lorita possui misteriosos olhos azuis, levemente acinzentados. A brava mãe preferiu estar perto do filho ainda que na rua, a viver preocupada longe de sua cria. Esta sogra é diferente. Não se mete muito na vida da nora, no entanto, não se afasta do filho. Como mãe de rebento Lorita anda em voltas, sempre tentando parecer invisível para o filho que não se agrada da presença da mãe na rua.

E foi ao me aproximar que descobri o custo de um banho. Quatro ou cinco reais. Não vale a pena. Com um pouco mais se pode adquirir uma pedrinha amiga. Déia afirma ser viciada, mas jamais ladra. Enquanto conversávamos, ela não sossegava. A hora de arrecadar recursos para alimetar seu algoz se aproximava. Déia se despede e vai “manguiá”. Aprendi como uma mulher cuida de seu ciclo mensal, de como se utiliza da desconfiança como sua maior proteção.

Voltei outro dia e procurei por Andréia. A rua não podia mais ser sua casa. Não por enquanto. Após uma briga com seu companheiro a moça quebrou um vaso da praça e foi levada pela polícia ao presídio feminino. David, livre, no entanto preso pelo coração à companheira, tenta articular a liberação da amada. Na ausência de Déia, ele se apega mais ainda aos cães. Sem dinheiro, sobrenome ou reputação o rapaz não tem voz, nem advogados e espera pela decisão da justiça quanto ao futuro de sua parceira.

Nesta visita aprendi que dona Lorita não era tão insana quanto se mostrava. A mania de repetir as mesmas frases e se esconder na religião era tão somente seu meio de defesa. Ao ver a preocupação de David com a companheira, Lorita se sentiu rejeitada e decidiu voltar para casa. “Vou voltar para meu canto, já que sou ignorada”.

E a historia continua. Dia após dia o tempo cuidará de alternar o elenco e mudar as vozes...
A rua é uma casa. È o lar de quem a escolheu ou foi por ela escolhido. Impressões que só tem quem se aproxima para descobrir.

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