sábado, 5 de dezembro de 2009
Meu endereço é a rua
“...assumindo plenamente sua inarredável condição mortal, aceitando em decorrência a angústia que só poderia ser dissimulada através da banalidade cotidiana.” Heidegger
Terça-feira 24 de novembro de 2009. Hoje, Rodrigo Cardoso Silva completa 30 anos. Por dez anos foi casado. É pai de uma menina de sete anos e há três deixou a família em Canoas, Rio Grande do Sul, para morar nas ruas. O motivo, ele não revela, mas dá uma pista: “O que os olhos não vêem o coração não sente”.
Depois da separação da mulher, resolveu cair no mundo e cultuar as ruas. Dormindo na calçada, sob um toldo de lona, em frente à garagem de uma casa fechada, na esquina da Rua Victor Meireles com a Rua General Bittencourt, no Centro de Florianópolis, Rodrigo é uma figura conhecida na área.
“O livro do mundo é a rua. As ruas são a escola do mundo. Aprendi muita coisa, muito rápido. Conheço centenas de pessoas por dia, de outros estados e até do estrangeiro. Sou carismático, trato todo mundo bem e com respeito”, diz, sorrindo e me olhando fixamente.
Nas três vezes que conversamos, pude constatar um pouco desse carisma. Alguns moradores e pessoas que trabalham em repartições, bares e restaurantes das redondezas, o chamam pelo nome, o cumprimentam e lhe pedem pequenos favores, como comprar cigarros, boletos de estacionamento, descarregar mercadorias e outros afazeres.
“Moro na rua, mas não sou vagabundo não, ‘doutor’. Aqui eu trabalho e ganho meu dinheiro sem precisar pegar o que é dos outros”. Continuamos a conversa. Descubro que Rodrigo é mais um desses jovens que saíram de casa forçados pelo conflito interior gerado pelo uso de drogas. Sobre a vida que leva, dá um sorriso tímido, demonstrando certa agitação nos gestos, como que incomodado com o que vai dizer.
“Estou na rua porque é melhor pra mim. Eu fumo crack e não quero incomodar minha família, aqui não tem pegação. Não sou viciado, sou cabeção, uso dose alta, mas quando acabou não corro atrás”, revela.
Pergunto se deseja parar com o consumo de drogas. Diz que já tentou algumas vezes, até voltou pra casa, ficou alguns dias, mas depois retornou às ruas. “Usar é muito mais barato que se tratar”, diz ele com seu jeito afetuoso e olhar calmo.
“Aqui acontece de tudo, ‘doutor’. Outro dia, teve um bacana, de madrugada, que me levou pra casa dele. Tomei banho, comi, bebi e depois deixei o cara lá, peladão, e me mandei”, conta, rindo-se.
O desafio cotidiano, porém, não é nada engraçado. Nos dias de calor, ele se lava em uma torneira pública, na avenida Hercílio Luz. Quando precisa usar banheiro, recorre a uma estrutura pública da Praça XV, ao preço de 50 centavos. O banho, uma vez por semana, é na rodoviária Rita Maria, isso quando arruma quatro reais para pagar o chuveiro. “Duro mesmo é no inverno ou quando está chovendo... As roupas ficam molhadas e faz muito frio”, confessa.
Assim como a história de Rodrigo, existem muitos outros dramas envolvendo álcool, drogas, prostituição e abandono, que acontecem por problemas de desestruturação pessoal ou familiar e acabam empurrando adolescentes, jovens e adultos para a condição de moradores de rua.
Afastados da cobrança dos familiares e absorvidos pela indiferença da sociedade, sem nenhuma proteção social, travam uma batalha diária pela sobrevivência. Mesmo que aparentemente não demonstrem, os moradores de rua levam uma vida marcada pelo sofrimento e pela vulnerabilidade física constante. Uma luta diária que exige estratégias engenhosas de sobrevivência.
A estratégia psicológica encontrada por Rodrigo é o de se anestesiar, rir e tirar onda da própria situação em que se encontra. Por quanto tempo ainda, ele não sabe, mas acredita que algum dia possa vencer o vício e então levar outro tipo de vida.
“A vida pra mim é um videogame. Pra evoluir no jogo tem que passar de fase. Ganhando essa fase, quero partir pra outra, sem uso de drogas. Vai ser difícil, mas as pessoas são aquilo que pensam que são. Os pensamentos positivos atraem forças positivas”, filosofa meu entrevistado.
Depois da separação da mulher, resolveu cair no mundo e cultuar as ruas. Dormindo na calçada, sob um toldo de lona, em frente à garagem de uma casa fechada, na esquina da Rua Victor Meireles com a Rua General Bittencourt, no Centro de Florianópolis, Rodrigo é uma figura conhecida na área.
“O livro do mundo é a rua. As ruas são a escola do mundo. Aprendi muita coisa, muito rápido. Conheço centenas de pessoas por dia, de outros estados e até do estrangeiro. Sou carismático, trato todo mundo bem e com respeito”, diz, sorrindo e me olhando fixamente.
Nas três vezes que conversamos, pude constatar um pouco desse carisma. Alguns moradores e pessoas que trabalham em repartições, bares e restaurantes das redondezas, o chamam pelo nome, o cumprimentam e lhe pedem pequenos favores, como comprar cigarros, boletos de estacionamento, descarregar mercadorias e outros afazeres.
“Moro na rua, mas não sou vagabundo não, ‘doutor’. Aqui eu trabalho e ganho meu dinheiro sem precisar pegar o que é dos outros”. Continuamos a conversa. Descubro que Rodrigo é mais um desses jovens que saíram de casa forçados pelo conflito interior gerado pelo uso de drogas. Sobre a vida que leva, dá um sorriso tímido, demonstrando certa agitação nos gestos, como que incomodado com o que vai dizer.
“Estou na rua porque é melhor pra mim. Eu fumo crack e não quero incomodar minha família, aqui não tem pegação. Não sou viciado, sou cabeção, uso dose alta, mas quando acabou não corro atrás”, revela.
Pergunto se deseja parar com o consumo de drogas. Diz que já tentou algumas vezes, até voltou pra casa, ficou alguns dias, mas depois retornou às ruas. “Usar é muito mais barato que se tratar”, diz ele com seu jeito afetuoso e olhar calmo.
“Aqui acontece de tudo, ‘doutor’. Outro dia, teve um bacana, de madrugada, que me levou pra casa dele. Tomei banho, comi, bebi e depois deixei o cara lá, peladão, e me mandei”, conta, rindo-se.
O desafio cotidiano, porém, não é nada engraçado. Nos dias de calor, ele se lava em uma torneira pública, na avenida Hercílio Luz. Quando precisa usar banheiro, recorre a uma estrutura pública da Praça XV, ao preço de 50 centavos. O banho, uma vez por semana, é na rodoviária Rita Maria, isso quando arruma quatro reais para pagar o chuveiro. “Duro mesmo é no inverno ou quando está chovendo... As roupas ficam molhadas e faz muito frio”, confessa.
Assim como a história de Rodrigo, existem muitos outros dramas envolvendo álcool, drogas, prostituição e abandono, que acontecem por problemas de desestruturação pessoal ou familiar e acabam empurrando adolescentes, jovens e adultos para a condição de moradores de rua.
Afastados da cobrança dos familiares e absorvidos pela indiferença da sociedade, sem nenhuma proteção social, travam uma batalha diária pela sobrevivência. Mesmo que aparentemente não demonstrem, os moradores de rua levam uma vida marcada pelo sofrimento e pela vulnerabilidade física constante. Uma luta diária que exige estratégias engenhosas de sobrevivência.
A estratégia psicológica encontrada por Rodrigo é o de se anestesiar, rir e tirar onda da própria situação em que se encontra. Por quanto tempo ainda, ele não sabe, mas acredita que algum dia possa vencer o vício e então levar outro tipo de vida.
“A vida pra mim é um videogame. Pra evoluir no jogo tem que passar de fase. Ganhando essa fase, quero partir pra outra, sem uso de drogas. Vai ser difícil, mas as pessoas são aquilo que pensam que são. Os pensamentos positivos atraem forças positivas”, filosofa meu entrevistado.
QUANDO OS OUTROS VÃO PRA CASA
por Luiz Felipe Bianchinni
Sento. Espero. Pessoas andam, correm. O vento sopra rápido, as folhas se mexem. Parece que vai chover, mas não chove. O cheiro de chuva chega antes da própria chuva enquanto as luzes da cidade vão se apagando lentamente. Aos poucos os barulhos dos passos rápidos e atrasados vão diminuindo, o silêncio pouco a pouco começa a aparecer. E é nesse momento, quando a luz acaba, que começo a perceber outro universo no Centro de Florianópolis. É quando o silêncio aparece que se vê uma outra realidade, uma realidade crua, invisível e calada.
Quando a luz verde da figueira começa a ficar mais forte começo a ver pessoas que não tinha visto antes naquele lugar. Pessoas que dormem, amam, comem, bebem e fumam seus cigarros em torno da Praça XV. O centro da cidade parece outro, e quem o habita também. Na verdade, não sei se essas pessoas estavam escondidas enquanto era dia ou se o movimento e o ritmo acelerado da capital escondem-nas. Junto desse cenário de penumbra, de cheiro de chuva, cachaça e roupa molhada está o medo e o que se esconde. Ali, na noite, na sombra do que é a cidade, na sombra do que restou do dia, eu vi naquelas pessoas um pouco de mim e do que aparece em mim quando está escuro.
Procuro alguém para conversar, ando ao redor da cidade e encontro Nilson Calo Rosa, de 52 anos, que vive há 30 na rua. Pergunto se pode conversar e ele logo diz que sim e oferece seu papelão para que eu sente ali com ele, eu sento e continuo conversando. Entre um cigarro e outro, revela-se aos poucos e mostra suas contradições, seus medos, sonhos e insatisfações.
Ele diz que está na rua porque gosta, que não nasceu para viver em gaiola. Nas ruas ele se sente um passarinho solto. Fala que sempre ficou mais na rua do que em casa e desde criança já sonhava com a liberdade das ruas.
Nilson diz que acorda todos os dias às 7 da manhã pra ir trabalhar de guardador de carros na rodoviária, onde fica o dia todo. Para tomar banho usa a própria rodoviária ou uma torneira na rua mesmo. Conta que sempre tem alguém que oferece comida para os sem-teto. Muitos grupos religiosos espíritas, evangélicos ou católicos trazem alimentos.
No terceiro cigarro, ele conta sobre seus medos e sobre o que acontece na madrugada das ruas da cidade. “Já vi gente ser esfaqueada do meu lado; daí tu olhas e fazes de conta que não está olhando,” conta Nilson. Para ele, que não gosta de confusão, a melhor opção é fingir que dorme quando está em uma situação de risco.
Ao falar de experiências com drogas afirma que se tornou um usuário ainda adolescente. Foi usuário de cocaína por 20 anos, mas já parou com a droga. Hoje usa crack às vezes para dormir, pois tem muita insônia, e bebe esporadicamente também... “De vez em quando tomo uns golinhos, mas tudo é prejudicado quando bebo. Agora eu tô a quatro ou cinco dias sem beber”, conta.
Logo depois, Nilson conta que é HIV, que pegou o vírus em relações sexuais com mulheres na rua. Conta que é preocupado com a saúde, que toma o coquetel e só transa com camisinha. Diz que muita gente não chega perto dele por medo de contaminação.
“Não volto pra casa porque não é espaço pra mim. Meu lugar é na rua”, afirma Nilson. Se de um lado está o homem que se diz livre dos padrões tradicionais de modo de vida, de outro está a solidão. Quando a chuva começa a cair mais forte e romper com o silêncio da noite no centro da capital, ele se revela mais e em algumas lágrimas mostra o preço que paga por essa “opção”.
Ele conta que perdeu a esposa há 10 anos e que desde então vive nas ruas. Quer dizer, diz que já “vivia” nas ruas antes, mas depois do falecimento da mulher resolveu entregar sua vida para a estrada. Nilson diz que se arrepende dos momentos em que maltratou sua família por causa da bebida, diz que carrega consigo essa culpa.
Teve dois filhos, que hoje são casados, trabalham e que não vê há 10 anos. Conta que os filhos se esqueceram dele mas que ele os guarda no coração. Pergunto a ele se não pensa em procurar os filhos e responde que não, que não será bem recebido. Nesse momento, seca as lágrimas que se formam nos olhos: procurar os filhos parece pior do que a dor que carrega consigo. Parece não acreditar em uma reconciliação.
“Cada ano aqui corresponde a cinco”, desabafa Nilson. Ao final da conversa, revela estar cansado de tudo isso e que tem vontade de sair das ruas. A preocupação parece ser com o cotidiano, como o que vai comer no dia ou aonde dormir. Ao perguntar sobre seus planos para o futuro, disse que gostaria de comprar ou alugar uma casa onde pudesse morar.
A noção de tempo para quem vive na rua me parece ser outra. Tenho a impressão de que os moradores das ruas vivem em um outro ritmo, diferente dos que estão na correria do mundo capitalista. Não que não estejam neste mundo ou não componham nossa realidade, entretanto, percebo em seu modo de vida uma opção. O homem é produto do meio social, entretanto, parece-me que as pessoa que vivem nas ruas se opõem de certa forma aos padrões e estereótipos tradicionais. Não sei quem é mais livre, se o jornalista que deve terminar esta reportagem ou o entrevistado. O que percebo é que a penumbra da noite faz com que os dois, através de uma conversa franca, desnudem-se por alguns instantes e mostrem as verdades humanas que restam quando as luzes são apagadas e os outros vão embora.
Quando a luz verde da figueira começa a ficar mais forte começo a ver pessoas que não tinha visto antes naquele lugar. Pessoas que dormem, amam, comem, bebem e fumam seus cigarros em torno da Praça XV. O centro da cidade parece outro, e quem o habita também. Na verdade, não sei se essas pessoas estavam escondidas enquanto era dia ou se o movimento e o ritmo acelerado da capital escondem-nas. Junto desse cenário de penumbra, de cheiro de chuva, cachaça e roupa molhada está o medo e o que se esconde. Ali, na noite, na sombra do que é a cidade, na sombra do que restou do dia, eu vi naquelas pessoas um pouco de mim e do que aparece em mim quando está escuro.
Procuro alguém para conversar, ando ao redor da cidade e encontro Nilson Calo Rosa, de 52 anos, que vive há 30 na rua. Pergunto se pode conversar e ele logo diz que sim e oferece seu papelão para que eu sente ali com ele, eu sento e continuo conversando. Entre um cigarro e outro, revela-se aos poucos e mostra suas contradições, seus medos, sonhos e insatisfações.
Ele diz que está na rua porque gosta, que não nasceu para viver em gaiola. Nas ruas ele se sente um passarinho solto. Fala que sempre ficou mais na rua do que em casa e desde criança já sonhava com a liberdade das ruas.
Nilson diz que acorda todos os dias às 7 da manhã pra ir trabalhar de guardador de carros na rodoviária, onde fica o dia todo. Para tomar banho usa a própria rodoviária ou uma torneira na rua mesmo. Conta que sempre tem alguém que oferece comida para os sem-teto. Muitos grupos religiosos espíritas, evangélicos ou católicos trazem alimentos.
No terceiro cigarro, ele conta sobre seus medos e sobre o que acontece na madrugada das ruas da cidade. “Já vi gente ser esfaqueada do meu lado; daí tu olhas e fazes de conta que não está olhando,” conta Nilson. Para ele, que não gosta de confusão, a melhor opção é fingir que dorme quando está em uma situação de risco.
Ao falar de experiências com drogas afirma que se tornou um usuário ainda adolescente. Foi usuário de cocaína por 20 anos, mas já parou com a droga. Hoje usa crack às vezes para dormir, pois tem muita insônia, e bebe esporadicamente também... “De vez em quando tomo uns golinhos, mas tudo é prejudicado quando bebo. Agora eu tô a quatro ou cinco dias sem beber”, conta.
Logo depois, Nilson conta que é HIV, que pegou o vírus em relações sexuais com mulheres na rua. Conta que é preocupado com a saúde, que toma o coquetel e só transa com camisinha. Diz que muita gente não chega perto dele por medo de contaminação.
“Não volto pra casa porque não é espaço pra mim. Meu lugar é na rua”, afirma Nilson. Se de um lado está o homem que se diz livre dos padrões tradicionais de modo de vida, de outro está a solidão. Quando a chuva começa a cair mais forte e romper com o silêncio da noite no centro da capital, ele se revela mais e em algumas lágrimas mostra o preço que paga por essa “opção”.
Ele conta que perdeu a esposa há 10 anos e que desde então vive nas ruas. Quer dizer, diz que já “vivia” nas ruas antes, mas depois do falecimento da mulher resolveu entregar sua vida para a estrada. Nilson diz que se arrepende dos momentos em que maltratou sua família por causa da bebida, diz que carrega consigo essa culpa.
Teve dois filhos, que hoje são casados, trabalham e que não vê há 10 anos. Conta que os filhos se esqueceram dele mas que ele os guarda no coração. Pergunto a ele se não pensa em procurar os filhos e responde que não, que não será bem recebido. Nesse momento, seca as lágrimas que se formam nos olhos: procurar os filhos parece pior do que a dor que carrega consigo. Parece não acreditar em uma reconciliação.
“Cada ano aqui corresponde a cinco”, desabafa Nilson. Ao final da conversa, revela estar cansado de tudo isso e que tem vontade de sair das ruas. A preocupação parece ser com o cotidiano, como o que vai comer no dia ou aonde dormir. Ao perguntar sobre seus planos para o futuro, disse que gostaria de comprar ou alugar uma casa onde pudesse morar.
A noção de tempo para quem vive na rua me parece ser outra. Tenho a impressão de que os moradores das ruas vivem em um outro ritmo, diferente dos que estão na correria do mundo capitalista. Não que não estejam neste mundo ou não componham nossa realidade, entretanto, percebo em seu modo de vida uma opção. O homem é produto do meio social, entretanto, parece-me que as pessoa que vivem nas ruas se opõem de certa forma aos padrões e estereótipos tradicionais. Não sei quem é mais livre, se o jornalista que deve terminar esta reportagem ou o entrevistado. O que percebo é que a penumbra da noite faz com que os dois, através de uma conversa franca, desnudem-se por alguns instantes e mostrem as verdades humanas que restam quando as luzes são apagadas e os outros vão embora.
A família “Apelido”.
por Paulo Vitor Dal Ponte
São aproximadamente 19h e preciso esperar mais uma até a chegada do ônibus e o fim da jornada de trabalho. Uma hora é tempo para muita coisa quando não se tem nada para fazer. Pensando na vida que levo, avisto uma mulher, negra, estatura média, magra. Usa uma calça que começa justa na parte superior da perna e termina larga escondendo a sandália rasteira que calça. Em cima da cintura uma camisa de malha pouco espessa, decotada, mostrando um sem volume de seios.
Fico intrigado com aquela figura. Quero conhecê-la, mas o simples oi me afronta. Disfarço e me dirijo até o carrinho de cachorro quente. Ao lado ela olha incessantemente para o pão. Devora-o com a imaginação, pois quando olha na mão, vê apenas uma pequenina cadela. Talvez sua única família, suponho.
Penso em pagar-lhe um cachorro quente, mas avisto um conglomerado de cães que a cercam aquela senhora. Talvez senhorita. Disfarço e começo a brincar com um deles:
— É o pretão, ela responde. - Pode brincar com ele, é manso.
Era exatamente o que eu queria. Uma brecha para poder quebrar o gelo e tentar saber um pouco mais sobre aquela figura. Começo perguntando o nome:
— Sou Pedrita. Você gosta de cachorros? Eu adoro!
Pedrita é moradora da Praça XV há tanto tempo que já a fez esquecer quanto. Vive das ajudas que recebe e fala em alto e bom som:
— Não roubo! Às vezes a fome bate, mas sempre tenho o que comer.
Não exito mais em pagar o cachorro quente que outrora não quis comprar. À espera da refeição, Pedrita conta que toma café e almoça. Menciona um bar, sem se lembrar do nome, que tem café da manha a R$ 1,00. À espera do lanche, continuamos a bater papo, eu perguntando e ela respondendo:
— Mas me conte...
É quando chega um tipo grande, barrigudo, parcialmente careca:
_ Pedriiiiiitaaaaaaaaaaaaa!!!
Após ter subitamente a atenção da moça, ele esfrega a face de seu polegar nos dedos indicador e médio. Parece não querer falar na minha frente o que procura. Como se eu não compreendesse o sinal que fazia:
— Pega lá com eles o dinheiro! Ordena Pedrita
— Como pegar com eles? Eles vão me matar! Eles são malucos! - retruca o jovem.
O jovem sai em disparada e dele não sobra nem o cheiro. Constrangido com a situação fico sem palavras para continuar o papo. Uma realidade nova para mim, rotina para eles. Sem saber o que falar, sou chamado pelo homem do cachorro quente com o lanche pronto. Me faltam palavras, então apenas o entrego a Pedrita, supondo que já terei que pagar o próximo, pois se ela comesse como o olhara anteriormente, não deixaria nenhum farelo cair ao chão:
— Estou com muita fome moço. Eu não sou de ter fome. Mas eu também não era de beber. Faço isso porque uso pedra. Craque não, pedra! Preciso usar! Só que depois que uso, tenho fome e vontade de comer e beber. É assim.
Olha atentamente para a calçada, retira uma minúscula pedra entre as demais e me mostra:
— A pedra que uso é mais ou menos desse tamanho ó.
Suas mãos em momento algum pegam a refeição ao mesmo tempo. Uma usa para comer a outra para acariciar seu cachorro. Magrela é o nome do animal que mais parece o bebê de Pedrita. Ela tem um filho de 12 anos, a quem chama de Juninho. Seu filho mora em Canasvieiras com a avó. Pedrita diz não se lembrar da última vez que o viu, nem da última vez que o teve nos braços. Agora tem Magrela:
— Oi, Pedrita, me dá um pedaço?
É, Silvana chegando. Segundo Pedrita, são amigas inseparáveis.
Ela mora no Monte Cristo, mas o contato íntimo que tem com Pedrita e a avidez com que devora o cachorro-quente me fazem pensar que se não mora, já morou na rua. Depois de duas bocadas, Silvana continua o trajeto.
Pergunto a Pedrita se não tentou construir outra família. É então que estende o braço e aponta para um homem, sentado a uns sete metros de distância. Ela me mostra uma ferida no ombro esquerdo e diz:
— Ele me bateu esses dias, olha isso! Não tem problema, ele pode, é meu marido! Aquele! Olha lá! Ôoooooooo Sem camisa cabeludo, venha cá!
A figura estática do homem nada se altera. Está lá, olhos entreabertos, respiração pausada, espírito em profunda meditação. Pedrita espera alguns instantes por uma resposta do homem, que mantém sua feição. Chateada por não ter detectado retorno algum, olha para o lado e solta um grito:
— Ôooooooo, tia, tais aí escondidinha, é? Vem aqui conversar com a gente!
Tia é uma senhora sorridente. Caminha morosa, com as colunas um pouco curvadas. Chega mansamente, me cumprimenta e senta ao nosso lado. Ofereço-lhe um cachorro-quente, que aceita. Pedrita faceira se põe a falar:
— Olha moço! Essa é a mãe do meu marido! É a Tia!
Como uma sogra pode tornar-se tia, penso eu. Na rua não se chama pela idade, muito menos, pela cor. Não se nomeia pelo gosto ou pela necessidade. Na rua se define um caráter, um modo de ser perante aquela minúscula sociedade paralela e ao mesmo tempo conjunta. Cada um está ali de um jeito diferente do outro. Ou querem esquecer uma realidade que já foi pior que a atual, ou apenas estão ali por força do destino ou do acaso. Nem cruel nem belo, mas real.
Pedrita não conta o motivo que a fez ir morar na Praça XV. Também não precisa falar novamente o que já disse intuitivamente. Na Praça tem de tudo, sério e risonho, fechado e tagarela, crente e ateu, feliz e triste, drogado e limpo.
Entrego o cachorro quente a Tia. Ela o encosta no colo. Já se passaram mais de uma hora e por incrível que pareça, Pedrita ainda comeu o seu lanche.
As duas coreografam a mesma cena. Com a ponta dos dedos indicadores, médio e polegar, pegam uma fatia do cachorro-quente. O transporte até a boca é lento e a degustação mais ainda. Não se preocupam em devorar o alimento e logo correr atrás do próximo. São calmas, fazem da refeição um momento prazeroso, como há muito, minha rotina alucinada não me deixa fazer.
Tia me agradece a gentileza e me deseja ter sempre mais. Ela está na rua acerca de um mês. Veio buscar seu filho, o cabeludo sem camisa. Ele é dependente químico e passa seus dias meditando na praça:
— Meu filho é minha preciosidade! - conta.
Pergunto sua idade:
— Sou mocinha! - responde ela.
Tia é devota de Igreja Evangélica, onde busca forças para retirar o filho das ruas. Ela não conta onde dorme, nem o que faz para ganhar dinheiro. Afirma apenas que não pede esmola e que Deus vai lhe mostrar o caminho certo, sempre.
— Onde a senhora mora?
— Aonde deus me mostrar.
— Você possui algum trabalho? De onde tira seu sustento?
— De onde deus me levar.
— O que você costuma comer?
— O que deus me der.
A alegria de Tia passa ternura. Ela fala, observa, muito receosa tenta adivinhar o que penso. Fala sempre sorrindo, talvez para o ouvinte tomar como brincadeira alguma verdade que ela precise contar no momento.
Pergunto por que o filho dela está ali. O sorriso cai por terra e o silêncio toma conta. Andréa acabara de terminar seu lanche e tia parece não ter forças para segurar o seu:
— Meu filho puxa drogas, moço! Eu não sou disso! Não fumo, não bebo! Mas estou feliz por estar com ele e vou conseguir tirá-lo daqui.
As drogas não chegam a amedrontá-la, mas a afrontam. É um inimigo declarado que Tia combate diariamente. Como esse inimigo não consegue atacá-la, vai em seu filho que não tem a mesma força:
— Moço, meu trabalho é fazer o bem. Quem trabalha fazendo o bem não precisa ter medo.
A partir daí, Tia se retrai. Continua sentada conosco mas não responde mais as perguntas. Se responde, é com sim ou não, pondo em todas as respostas a palavra Deus. Pergunto se teve algum outro filho? Se ainda fala com o marido? Se fez outra família na rua, ou se tem amigos nela.
O sorriso dela volta:
— A gente conversa sempre por aqui. Às vezes isso é um berreiro só. Quando ganhamos alguma coisa de pessoas boas aí sim vira uma festa.
Tia afirma não pedir dinheiro pra ninguém. Apenas agradece se alguém lhe oferece algo:
— As pessoas passam aqui e me dão dinheiro. Eu não peço, mas se me dão, não é nada ruim, né querido? Meu filho às vezes pede. Mas ele tá novo, tem 35 anos, não precisa disso.
Pedrita ri. Não acredita no que Tia acabara de falar e confidencia:
— Ele não tem 35 nada. Tem 50, 60.
Tia baixa sua cabeça e tenta esconder a face, a voz muda de entonação. Parece envergonhada. Ela é esperta, provavelmente percebeu o que eu estou pensando. Se ele tem 50 anos e é filho de Tia, ela deve ter pelo menos uns 15 anos mais. O fato de as pessoas a acharem velha a amedronta.
Outro fator que intimida o morador de rua é a hora de dormir. Pedrita tinha medo dessa hora. Quando a noite cai, o movimentar barulhento da capital é substituído pelo conversar das corujas:
— Tinha medo! Hoje não tenho mais! Além de magrela, tenho mais quatro cachorros que fazem minha segurança durante a noite.
Pergunto se a policia não os protege:
— A Polícia? Pra que de polícia quando temos os cachorros. Enquanto dormimos, eles nos guardam. Os policiais até já ameaçaram dar tiros nos nossos cachorros.
Enquanto fala, Pedrita aponta para a direita, estica os dedos indicadores e médio e colou-os, dobrou o polegar e o dedo mínimo e o com o anelar, atira:
— Pá, pá.
Nesse momento um senhor de idade avançada, calça e camisa social, cabelo, barba e bigode bem feitos, que vinha caminhando, pulou para trás em um só golpe de susto. Pedrita não titubeou:
— Oi, senhor. Me dá um dinheirinhooooooooooo. Eu tô com fome.
O senhor pouca atenção dá à moça e como alguém em extremo estado de fúria continua seu trajeto, declamando poesias em baixíssimo som. Alguém poderia até achar que saiu resmungando.
Como se esse diálogo fosse a coisa mais normal do mundo, Pedrita volta diretamente a conversa e talvez já até tivesse deletado aquele senhor de sua memória. Tenta falar algo que sua frequente tosse naquele momento não deixa. Tosse incessantemente. Para apenas quando se esquece. Pedrita tem tuberculose e HIV.
Percebendo a pausa que faço para esperar Pedrita terminar de tossir, Tia inverte papéis de jornalista e fonte e me indaga:
— Você já viu essas caras amarradas? Que coisa mais triste. Passam aqui na praça o tempo todo como um rastro de pólvora. Às vezes a mesma pessoa passa até 20 vezes por dia. Sempre correndo para o trabalho, sempre pensando nos problemas. Essas pessoas se esquecem de viver.
Ofereço mais um lanche a Tia, que aceita. Quando me levanto para pedir, entrego a vez a um moço que chegou no mesmo instante que eu. Para não deixar minhas fontes ao léu continuo batendo papo enquanto os cachorros-quentes do outro cliente são feitos. Intrigado com a demora de quase 25 minutos do meu companheiro consumidor, me sinto seduzido a contar quantos cachorros quentes ele acabara de pedir. Eram 18.
Pedrita vê minha preocupação e brinca com o rapaz:
— O moço, hein! Deve ter família grande, quanta comida você está levando!
Ela recebe um sorriso amarelo do moço que nada diz. Quando ele deixa a barraca, chega enfim a minha vez. Tia escolhe o que quer e o que não quer em seu cachorro-quente e fica esperando o balconista terminar o preparo. Apesar do que disse antes, me pede cinco reais, justificando-se na mesma quantia que anteriormente havia dado a Pedrita. Nesse momento resolvo perguntar como está me pedindo se falou que não pedia. Ela não exita na resposta e ma manda de bate pronto:
— É brincadeira, né querido. A gente gosta de brincar e o senhor me pareceu legal.
É ai que entrego seu cachorro-quente, intrigado com a sua brincadeira de dizer verdades. Tia me agradece dizendo:
— Que deus sempre lhe dê mais!
A vida na rua é uma constante conquista, tanto de espaço como de comida. É o jogo da sobrevivência. Hábitos básicos como escovar os dentes, tomar banho, refeições com horários não são rotina dessas pessoas. Pedrita toma banho ou num hotel, ou na.rodoviária. Seu banho sai em torno de cinco reais. Para comer, Tia não conta seu método, mas afirma ir sempre a um lugar diferente.
Assim os moradores da praça XV vivem, como povos nômades, de lá para cá, batalhando por sua sobrevivência. São mesmo uma grande família, que sorri, que pula que almoça e dorme junto. Eles também brigam, também discutem, mas de apelido em apelido, todos entendem o momento de cada um. Tia é tia. Sempre sorridente, sempre disposta a aconselhar. Pedrita é Pedrita, magra, frágil. Sem Camisa Cabeludo, o dono da casa, sempre meditando e concentrado. Não tem nem tempo para me conceder uma entrevista. Me contento e abro mão da fonte.
Peço para que ambas tirem uma foto. Pedrita pede três reais pela foto e Tia diz que precisa ir para casa. Pergunto novamente onde fica seu canto e ela novamente responde: “aonde deus me levar”. Afasta-se lentamente, passa pelo filho que ainda medita, para a sua frente por um bom tempo, como uma estátua. Talvez tentando conversar por telepatia. Pedrita, contente com os três reais que lhe dou me puxa pelo braço.
— Vamos moço, hoje estou feliz. Vou bater foto com minha família toda.
A moça chama seus cachorros com um só assovio, senta-se no banco da Praça 15, arreganha em sua face a felicidade do instante.
Posiciono a câmera e click, ponto final.
Fico intrigado com aquela figura. Quero conhecê-la, mas o simples oi me afronta. Disfarço e me dirijo até o carrinho de cachorro quente. Ao lado ela olha incessantemente para o pão. Devora-o com a imaginação, pois quando olha na mão, vê apenas uma pequenina cadela. Talvez sua única família, suponho.
Penso em pagar-lhe um cachorro quente, mas avisto um conglomerado de cães que a cercam aquela senhora. Talvez senhorita. Disfarço e começo a brincar com um deles:
— É o pretão, ela responde. - Pode brincar com ele, é manso.
Era exatamente o que eu queria. Uma brecha para poder quebrar o gelo e tentar saber um pouco mais sobre aquela figura. Começo perguntando o nome:
— Sou Pedrita. Você gosta de cachorros? Eu adoro!
Pedrita é moradora da Praça XV há tanto tempo que já a fez esquecer quanto. Vive das ajudas que recebe e fala em alto e bom som:
— Não roubo! Às vezes a fome bate, mas sempre tenho o que comer.
Não exito mais em pagar o cachorro quente que outrora não quis comprar. À espera da refeição, Pedrita conta que toma café e almoça. Menciona um bar, sem se lembrar do nome, que tem café da manha a R$ 1,00. À espera do lanche, continuamos a bater papo, eu perguntando e ela respondendo:
— Mas me conte...
É quando chega um tipo grande, barrigudo, parcialmente careca:
_ Pedriiiiiitaaaaaaaaaaaaa!!!
Após ter subitamente a atenção da moça, ele esfrega a face de seu polegar nos dedos indicador e médio. Parece não querer falar na minha frente o que procura. Como se eu não compreendesse o sinal que fazia:
— Pega lá com eles o dinheiro! Ordena Pedrita
— Como pegar com eles? Eles vão me matar! Eles são malucos! - retruca o jovem.
O jovem sai em disparada e dele não sobra nem o cheiro. Constrangido com a situação fico sem palavras para continuar o papo. Uma realidade nova para mim, rotina para eles. Sem saber o que falar, sou chamado pelo homem do cachorro quente com o lanche pronto. Me faltam palavras, então apenas o entrego a Pedrita, supondo que já terei que pagar o próximo, pois se ela comesse como o olhara anteriormente, não deixaria nenhum farelo cair ao chão:
— Estou com muita fome moço. Eu não sou de ter fome. Mas eu também não era de beber. Faço isso porque uso pedra. Craque não, pedra! Preciso usar! Só que depois que uso, tenho fome e vontade de comer e beber. É assim.
Olha atentamente para a calçada, retira uma minúscula pedra entre as demais e me mostra:
— A pedra que uso é mais ou menos desse tamanho ó.
Suas mãos em momento algum pegam a refeição ao mesmo tempo. Uma usa para comer a outra para acariciar seu cachorro. Magrela é o nome do animal que mais parece o bebê de Pedrita. Ela tem um filho de 12 anos, a quem chama de Juninho. Seu filho mora em Canasvieiras com a avó. Pedrita diz não se lembrar da última vez que o viu, nem da última vez que o teve nos braços. Agora tem Magrela:
— Oi, Pedrita, me dá um pedaço?
É, Silvana chegando. Segundo Pedrita, são amigas inseparáveis.
Ela mora no Monte Cristo, mas o contato íntimo que tem com Pedrita e a avidez com que devora o cachorro-quente me fazem pensar que se não mora, já morou na rua. Depois de duas bocadas, Silvana continua o trajeto.
Pergunto a Pedrita se não tentou construir outra família. É então que estende o braço e aponta para um homem, sentado a uns sete metros de distância. Ela me mostra uma ferida no ombro esquerdo e diz:
— Ele me bateu esses dias, olha isso! Não tem problema, ele pode, é meu marido! Aquele! Olha lá! Ôoooooooo Sem camisa cabeludo, venha cá!
A figura estática do homem nada se altera. Está lá, olhos entreabertos, respiração pausada, espírito em profunda meditação. Pedrita espera alguns instantes por uma resposta do homem, que mantém sua feição. Chateada por não ter detectado retorno algum, olha para o lado e solta um grito:
— Ôooooooo, tia, tais aí escondidinha, é? Vem aqui conversar com a gente!
Tia é uma senhora sorridente. Caminha morosa, com as colunas um pouco curvadas. Chega mansamente, me cumprimenta e senta ao nosso lado. Ofereço-lhe um cachorro-quente, que aceita. Pedrita faceira se põe a falar:
— Olha moço! Essa é a mãe do meu marido! É a Tia!
Como uma sogra pode tornar-se tia, penso eu. Na rua não se chama pela idade, muito menos, pela cor. Não se nomeia pelo gosto ou pela necessidade. Na rua se define um caráter, um modo de ser perante aquela minúscula sociedade paralela e ao mesmo tempo conjunta. Cada um está ali de um jeito diferente do outro. Ou querem esquecer uma realidade que já foi pior que a atual, ou apenas estão ali por força do destino ou do acaso. Nem cruel nem belo, mas real.
Pedrita não conta o motivo que a fez ir morar na Praça XV. Também não precisa falar novamente o que já disse intuitivamente. Na Praça tem de tudo, sério e risonho, fechado e tagarela, crente e ateu, feliz e triste, drogado e limpo.
Entrego o cachorro quente a Tia. Ela o encosta no colo. Já se passaram mais de uma hora e por incrível que pareça, Pedrita ainda comeu o seu lanche.
As duas coreografam a mesma cena. Com a ponta dos dedos indicadores, médio e polegar, pegam uma fatia do cachorro-quente. O transporte até a boca é lento e a degustação mais ainda. Não se preocupam em devorar o alimento e logo correr atrás do próximo. São calmas, fazem da refeição um momento prazeroso, como há muito, minha rotina alucinada não me deixa fazer.
Tia me agradece a gentileza e me deseja ter sempre mais. Ela está na rua acerca de um mês. Veio buscar seu filho, o cabeludo sem camisa. Ele é dependente químico e passa seus dias meditando na praça:
— Meu filho é minha preciosidade! - conta.
Pergunto sua idade:
— Sou mocinha! - responde ela.
Tia é devota de Igreja Evangélica, onde busca forças para retirar o filho das ruas. Ela não conta onde dorme, nem o que faz para ganhar dinheiro. Afirma apenas que não pede esmola e que Deus vai lhe mostrar o caminho certo, sempre.
— Onde a senhora mora?
— Aonde deus me mostrar.
— Você possui algum trabalho? De onde tira seu sustento?
— De onde deus me levar.
— O que você costuma comer?
— O que deus me der.
A alegria de Tia passa ternura. Ela fala, observa, muito receosa tenta adivinhar o que penso. Fala sempre sorrindo, talvez para o ouvinte tomar como brincadeira alguma verdade que ela precise contar no momento.
Pergunto por que o filho dela está ali. O sorriso cai por terra e o silêncio toma conta. Andréa acabara de terminar seu lanche e tia parece não ter forças para segurar o seu:
— Meu filho puxa drogas, moço! Eu não sou disso! Não fumo, não bebo! Mas estou feliz por estar com ele e vou conseguir tirá-lo daqui.
As drogas não chegam a amedrontá-la, mas a afrontam. É um inimigo declarado que Tia combate diariamente. Como esse inimigo não consegue atacá-la, vai em seu filho que não tem a mesma força:
— Moço, meu trabalho é fazer o bem. Quem trabalha fazendo o bem não precisa ter medo.
A partir daí, Tia se retrai. Continua sentada conosco mas não responde mais as perguntas. Se responde, é com sim ou não, pondo em todas as respostas a palavra Deus. Pergunto se teve algum outro filho? Se ainda fala com o marido? Se fez outra família na rua, ou se tem amigos nela.
O sorriso dela volta:
— A gente conversa sempre por aqui. Às vezes isso é um berreiro só. Quando ganhamos alguma coisa de pessoas boas aí sim vira uma festa.
Tia afirma não pedir dinheiro pra ninguém. Apenas agradece se alguém lhe oferece algo:
— As pessoas passam aqui e me dão dinheiro. Eu não peço, mas se me dão, não é nada ruim, né querido? Meu filho às vezes pede. Mas ele tá novo, tem 35 anos, não precisa disso.
Pedrita ri. Não acredita no que Tia acabara de falar e confidencia:
— Ele não tem 35 nada. Tem 50, 60.
Tia baixa sua cabeça e tenta esconder a face, a voz muda de entonação. Parece envergonhada. Ela é esperta, provavelmente percebeu o que eu estou pensando. Se ele tem 50 anos e é filho de Tia, ela deve ter pelo menos uns 15 anos mais. O fato de as pessoas a acharem velha a amedronta.
Outro fator que intimida o morador de rua é a hora de dormir. Pedrita tinha medo dessa hora. Quando a noite cai, o movimentar barulhento da capital é substituído pelo conversar das corujas:
— Tinha medo! Hoje não tenho mais! Além de magrela, tenho mais quatro cachorros que fazem minha segurança durante a noite.
Pergunto se a policia não os protege:
— A Polícia? Pra que de polícia quando temos os cachorros. Enquanto dormimos, eles nos guardam. Os policiais até já ameaçaram dar tiros nos nossos cachorros.
Enquanto fala, Pedrita aponta para a direita, estica os dedos indicadores e médio e colou-os, dobrou o polegar e o dedo mínimo e o com o anelar, atira:
— Pá, pá.
Nesse momento um senhor de idade avançada, calça e camisa social, cabelo, barba e bigode bem feitos, que vinha caminhando, pulou para trás em um só golpe de susto. Pedrita não titubeou:
— Oi, senhor. Me dá um dinheirinhooooooooooo. Eu tô com fome.
O senhor pouca atenção dá à moça e como alguém em extremo estado de fúria continua seu trajeto, declamando poesias em baixíssimo som. Alguém poderia até achar que saiu resmungando.
Como se esse diálogo fosse a coisa mais normal do mundo, Pedrita volta diretamente a conversa e talvez já até tivesse deletado aquele senhor de sua memória. Tenta falar algo que sua frequente tosse naquele momento não deixa. Tosse incessantemente. Para apenas quando se esquece. Pedrita tem tuberculose e HIV.
Percebendo a pausa que faço para esperar Pedrita terminar de tossir, Tia inverte papéis de jornalista e fonte e me indaga:
— Você já viu essas caras amarradas? Que coisa mais triste. Passam aqui na praça o tempo todo como um rastro de pólvora. Às vezes a mesma pessoa passa até 20 vezes por dia. Sempre correndo para o trabalho, sempre pensando nos problemas. Essas pessoas se esquecem de viver.
Ofereço mais um lanche a Tia, que aceita. Quando me levanto para pedir, entrego a vez a um moço que chegou no mesmo instante que eu. Para não deixar minhas fontes ao léu continuo batendo papo enquanto os cachorros-quentes do outro cliente são feitos. Intrigado com a demora de quase 25 minutos do meu companheiro consumidor, me sinto seduzido a contar quantos cachorros quentes ele acabara de pedir. Eram 18.
Pedrita vê minha preocupação e brinca com o rapaz:
— O moço, hein! Deve ter família grande, quanta comida você está levando!
Ela recebe um sorriso amarelo do moço que nada diz. Quando ele deixa a barraca, chega enfim a minha vez. Tia escolhe o que quer e o que não quer em seu cachorro-quente e fica esperando o balconista terminar o preparo. Apesar do que disse antes, me pede cinco reais, justificando-se na mesma quantia que anteriormente havia dado a Pedrita. Nesse momento resolvo perguntar como está me pedindo se falou que não pedia. Ela não exita na resposta e ma manda de bate pronto:
— É brincadeira, né querido. A gente gosta de brincar e o senhor me pareceu legal.
É ai que entrego seu cachorro-quente, intrigado com a sua brincadeira de dizer verdades. Tia me agradece dizendo:
— Que deus sempre lhe dê mais!
A vida na rua é uma constante conquista, tanto de espaço como de comida. É o jogo da sobrevivência. Hábitos básicos como escovar os dentes, tomar banho, refeições com horários não são rotina dessas pessoas. Pedrita toma banho ou num hotel, ou na.rodoviária. Seu banho sai em torno de cinco reais. Para comer, Tia não conta seu método, mas afirma ir sempre a um lugar diferente.
Assim os moradores da praça XV vivem, como povos nômades, de lá para cá, batalhando por sua sobrevivência. São mesmo uma grande família, que sorri, que pula que almoça e dorme junto. Eles também brigam, também discutem, mas de apelido em apelido, todos entendem o momento de cada um. Tia é tia. Sempre sorridente, sempre disposta a aconselhar. Pedrita é Pedrita, magra, frágil. Sem Camisa Cabeludo, o dono da casa, sempre meditando e concentrado. Não tem nem tempo para me conceder uma entrevista. Me contento e abro mão da fonte.
Peço para que ambas tirem uma foto. Pedrita pede três reais pela foto e Tia diz que precisa ir para casa. Pergunto novamente onde fica seu canto e ela novamente responde: “aonde deus me levar”. Afasta-se lentamente, passa pelo filho que ainda medita, para a sua frente por um bom tempo, como uma estátua. Talvez tentando conversar por telepatia. Pedrita, contente com os três reais que lhe dou me puxa pelo braço.
— Vamos moço, hoje estou feliz. Vou bater foto com minha família toda.
A moça chama seus cachorros com um só assovio, senta-se no banco da Praça 15, arreganha em sua face a felicidade do instante.
Posiciono a câmera e click, ponto final.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
RG: 1576995-0
Por Karen Koerich Gerber
A história de Nelson Isauro de Oliveira Neto, RG: 1576995-0, um intrigante comunicador, um morador da Ilha de Santa Catarina, um futuro com teto
Era uma casa muito engraçada, só tinha teto e uma parede. Era aberta para todos os passantes e visitantes, um lugar sem número do centro de Florianópolis, para ficar mais fácil: na rua Deodoro, numa marquise qualquer para alguns, lar para outros. Sem endereço, Nelson Isauro de Oliveira Neto é uma dessas pessoas que muitos passam e não vêem; não porque o julgam como um ser diferente, mas por ser igual a tantos outros que são ignorados todos os dias. No entanto, ele é um cidadão à parte, além de artesão, um ótimo comunicador, o que o torna cada vez mais visível, pois, segundo Nelson, invisíveis são os que não sabem se expressar, e ele com certeza sabe.
Com muita simpatia e sem medo Nelson me convida para entrar e é muito receptivo. Estranho como a cada poeirinha que parece invadir seu espaço é expulsa em poucos segundos. A preocupação constante com o que está a sua volta lhe dá um olhar vago, carregado de lembranças e sonhos, mas a vontade de contar a sua história é grande e por isso ele continua, pensando em cada palavra que deve ser dita e como narrar fatos tão desconexos, verdadeiros ou não, não cabe a ninguém julgar e sim conhecer a atmosfera de um morador fora dos padrões da normalidade para muitos outros moradores de Florianópolis.
Gaúcho, veio para a Ilha aos quatro anos de idade, separado dos pais, morava na barra da lagoa, trabalhava e morava por lá, até que... Essa é a primeira versão, na segunda ele veio com o pai e foi apenas separado da mãe, pessoa que ele nunca mais ouviu falar. Mas o importante é que enquanto morava aqui na Ilha, Nelson não deixou de aproveitar o tempo livre do trabalho para estudar, fez até a 8ª série no Rio Vermelho. “Abandonei o colégio no ensino médio porque os professores querem nos ensinar coisas que não são tão importantes para a vida”. Mas como é a vida... Com 17 anos ele resolveu pegar uma carona, dessas sem rumo, e foi parar no Rio de Janeiro, na Cidade Maravilhosa. Pela intensa convivência com turistas estrangeiros, aprendeu até um segundo idioma, o inglês. Por lá ficou até os 23 anos, prestou serviço militar e prefere não dizer onde morava, mas afirma que mantinha diversos romances e com a vida diferente da que levava em Florianópolis acabou parando no mundo das drogas.
Outros problemas ainda acabaram levando-o para Santos e depois o trazendo de volta. Novamente ele voltou a morar na capital de Santa Catarina. “Essa cidade me acolheu, sou muito feliz aqui, e eu nunca faria nada de mal para esse lugar. Estou afastado do tráfico de drogas”. Por isso aqui ele nunca teve problema com a polícia – não menciona se os teve ou não no Rio – mas afirma que quem tem problemas dessa ordem é porque algo de errado fez.
Quando voltou foi acolhido pela família paterna “Não agüentei as atrocidades cometidas pelo meu tio com a minha tia. Eu sou digno e essa história de livre arbítrio me deixa indignado, pois o livre arbítrio não nos dá o direito de cometer o mesmo erro diversas vezes. Eu cheguei a denunciar o meu tio, mas minha família voltou-se contra mim”. Sem peso na consciência, resolveu deixar a casa e há dois meses voltou a ser morador de rua. “A mente humana é como um papagaio, se você lê muitas coisas ruins ou vê muitas coisas ruins, acaba repetindo tudo e eu não queria nada daquilo pra mim”. O grupo no qual hoje Nelson convive é composto por três amigos. Às vezes eles se reúnem em cinco, mas é raro, cada um gosta de ter seu espaço respeitado. “Já morei na rodoviária, na Beiramar, na Agronômica, mas faz uns 20 dias que estou aqui”.
Vergonha? Medo? “Morar na rua é uma necessidade do momento. Não me sinto mal por estar aqui, não quero que os outros saibam por que eu não quero energias negativas, mas não sou um coitado, coitado é um filho de um burro e não eu, isso é só uma fase”. Para aceitar a vida que leva, faz uso de drogas, bebida e cigarros. Afirma beber socialmente, mas isso não é a realidade visível.
Diz também não ter medo, e sim receio de sofrer qualquer uma das atrocidades que vivenciou. “O bom de viver em grupo é que num dia um tem a cachaça, o outro um beck, o outro a farinha e daí nós fazemos a sopa”. Mas se há algum descontrole por parte do grupo, Nelson baixa a cabeça e reza: “Deus, me fazei compreender que todos que estão à minha volta são filhos de Deus”. Segundo ele, essa é a única forma de espantar maus pensamentos e intenções. Afirma que no geral todos são companheiros uns dos outros, mas o clima de um verdadeiro lar faz falta.
No Natal, Nelson quer estar de casa nova. Acredita que cada um tem aquilo que merece, por isso não vai demorar para que seu sonho se torne realidade. Com uma pequena reclamação sobre a falta de assistencialismo por parte das assistentes sociais, ele afirma que o povo brasileiro em geral é muito solidário. Por isso não tem medo do futuro e está fazendo com que tudo conspire a seu favor. “Eu ganho um auxílio saúde de 365 reais por mês (por ser soropositivo) e pretendo alugar um quartinho”, mas isso não é só para atender o seu desejo. “Já percebeu como estou vestido?”, estava todo de verde, inclusive mostrou um presente que ganhou no mesmo dia, um tênis da mesma cor da roupa. “Nada vai tirar a minha esperança”.
Com o cigarro na boca, Nelson mantinha o sorriso tímido e pensamentos secretos sobre o que faria depois que arranjasse um novo lugar para morar, mas naquele momento estava feliz apenas por ter sido reconhecido e contado sua história. Aos 45 anos, ele espera rever a família que deixou para trás, reconstruir a vida e voltar a ver as ruas como um local público e não um canto que tomou como seu.
Com muita simpatia e sem medo Nelson me convida para entrar e é muito receptivo. Estranho como a cada poeirinha que parece invadir seu espaço é expulsa em poucos segundos. A preocupação constante com o que está a sua volta lhe dá um olhar vago, carregado de lembranças e sonhos, mas a vontade de contar a sua história é grande e por isso ele continua, pensando em cada palavra que deve ser dita e como narrar fatos tão desconexos, verdadeiros ou não, não cabe a ninguém julgar e sim conhecer a atmosfera de um morador fora dos padrões da normalidade para muitos outros moradores de Florianópolis.
Gaúcho, veio para a Ilha aos quatro anos de idade, separado dos pais, morava na barra da lagoa, trabalhava e morava por lá, até que... Essa é a primeira versão, na segunda ele veio com o pai e foi apenas separado da mãe, pessoa que ele nunca mais ouviu falar. Mas o importante é que enquanto morava aqui na Ilha, Nelson não deixou de aproveitar o tempo livre do trabalho para estudar, fez até a 8ª série no Rio Vermelho. “Abandonei o colégio no ensino médio porque os professores querem nos ensinar coisas que não são tão importantes para a vida”. Mas como é a vida... Com 17 anos ele resolveu pegar uma carona, dessas sem rumo, e foi parar no Rio de Janeiro, na Cidade Maravilhosa. Pela intensa convivência com turistas estrangeiros, aprendeu até um segundo idioma, o inglês. Por lá ficou até os 23 anos, prestou serviço militar e prefere não dizer onde morava, mas afirma que mantinha diversos romances e com a vida diferente da que levava em Florianópolis acabou parando no mundo das drogas.
Outros problemas ainda acabaram levando-o para Santos e depois o trazendo de volta. Novamente ele voltou a morar na capital de Santa Catarina. “Essa cidade me acolheu, sou muito feliz aqui, e eu nunca faria nada de mal para esse lugar. Estou afastado do tráfico de drogas”. Por isso aqui ele nunca teve problema com a polícia – não menciona se os teve ou não no Rio – mas afirma que quem tem problemas dessa ordem é porque algo de errado fez.
Quando voltou foi acolhido pela família paterna “Não agüentei as atrocidades cometidas pelo meu tio com a minha tia. Eu sou digno e essa história de livre arbítrio me deixa indignado, pois o livre arbítrio não nos dá o direito de cometer o mesmo erro diversas vezes. Eu cheguei a denunciar o meu tio, mas minha família voltou-se contra mim”. Sem peso na consciência, resolveu deixar a casa e há dois meses voltou a ser morador de rua. “A mente humana é como um papagaio, se você lê muitas coisas ruins ou vê muitas coisas ruins, acaba repetindo tudo e eu não queria nada daquilo pra mim”. O grupo no qual hoje Nelson convive é composto por três amigos. Às vezes eles se reúnem em cinco, mas é raro, cada um gosta de ter seu espaço respeitado. “Já morei na rodoviária, na Beiramar, na Agronômica, mas faz uns 20 dias que estou aqui”.
Vergonha? Medo? “Morar na rua é uma necessidade do momento. Não me sinto mal por estar aqui, não quero que os outros saibam por que eu não quero energias negativas, mas não sou um coitado, coitado é um filho de um burro e não eu, isso é só uma fase”. Para aceitar a vida que leva, faz uso de drogas, bebida e cigarros. Afirma beber socialmente, mas isso não é a realidade visível.
Diz também não ter medo, e sim receio de sofrer qualquer uma das atrocidades que vivenciou. “O bom de viver em grupo é que num dia um tem a cachaça, o outro um beck, o outro a farinha e daí nós fazemos a sopa”. Mas se há algum descontrole por parte do grupo, Nelson baixa a cabeça e reza: “Deus, me fazei compreender que todos que estão à minha volta são filhos de Deus”. Segundo ele, essa é a única forma de espantar maus pensamentos e intenções. Afirma que no geral todos são companheiros uns dos outros, mas o clima de um verdadeiro lar faz falta.
No Natal, Nelson quer estar de casa nova. Acredita que cada um tem aquilo que merece, por isso não vai demorar para que seu sonho se torne realidade. Com uma pequena reclamação sobre a falta de assistencialismo por parte das assistentes sociais, ele afirma que o povo brasileiro em geral é muito solidário. Por isso não tem medo do futuro e está fazendo com que tudo conspire a seu favor. “Eu ganho um auxílio saúde de 365 reais por mês (por ser soropositivo) e pretendo alugar um quartinho”, mas isso não é só para atender o seu desejo. “Já percebeu como estou vestido?”, estava todo de verde, inclusive mostrou um presente que ganhou no mesmo dia, um tênis da mesma cor da roupa. “Nada vai tirar a minha esperança”.
Com o cigarro na boca, Nelson mantinha o sorriso tímido e pensamentos secretos sobre o que faria depois que arranjasse um novo lugar para morar, mas naquele momento estava feliz apenas por ter sido reconhecido e contado sua história. Aos 45 anos, ele espera rever a família que deixou para trás, reconstruir a vida e voltar a ver as ruas como um local público e não um canto que tomou como seu.
O Fantasma de Canasvieiras
por Regiane Niehues Pezente
A história de quem foge da morte para não morrer novamente
Florianópolis abriga cerca de 400.000 habitantes, um deles é fantasma. Curitiba, como é conhecido, nasceu no estado do Paraná. Há dez anos o homem baixo, magro e de pele escura trabalha em Canasvieiras. A noite é sua cúmplice. Durante o dia vira turista no centro da capital.
O sol está se pondo na capital de Santa Catarina. Curitiba está sentado no Coreto do centro de Florianópolis. Outros três homens estão com ele. Curitiba bebe cachaça e sorri. A curiosidada fica aguçada e ele quer saber o motivo de tanta pergunta.
Os outros três homens se afastam, Curitiba entende o motivo das perguntas. Um dos homens volta a se aproximar. O centro é movimentado e Curitiba ouve música, “umas músicas ai”.
Até onde sabe, tem filho no Rio Grande do Sul, no Paraná e em Santa Catarina. A mãe também mora em Canasvieiras e cuida de um menino de seis anos; a filha de seis meses está sob a guarda da justiça. A esposa de Curitiba deu a luz há seis meses e agora está presa. O motivo? “Latro... roubo seguido de morte”. O trabalho de Curitiba paga um advogado pra tirar ela da prisão.
Já é noite na cidade de Florianópolis, as luzes dos postes iluminam o rosto descontraído e tenso de Curitiba. Ele também já foi preso. Mas não fica detido por muito tempo, no máximo um dia. Fantasma não tem identidade, não pode ficar preso. Quando ele morreu? A primeira vez foi na cidade de Curitiba mesmo, seu atestado de óbito evitou sua prisão. Para não ser apagado foi para o Rio Grande do Sul onde morreu pela segunda vez. Agora são dois atestados de óbito da mesma pessoa. Pelo mesmo motivo que saiu do Paraná, saiu também do Rio Grande do Sul.
Em Santa Catarina veio tentar a vida na capital. Desembarcou em Canasvieiras. Mas lá já havia cinco homens que faziam o mesmo serviço que Curitiba. Mesmo assim retomou sua atividade em parceria com os atuais líderes. Hoje só Curitiba chefia a região. Dos cinco que trabalhavam lá, dois estão presos e três morreram.
Canasvieiras perdeu seus cinco líderes e ganhou um. Aos poucos os seguidores de Curitiba chegam no Coreto, mas o clima tenso o deixa desconfortável. Curitiba sabe que agora quem quiser trabalhar no mesmo ramo que ele “tem que pedir licença pra entrar”. Mas ele diz que é do bem, porque ele é malandro. O malandro não faz mal a sociedade, só “faz mal pra quem faz mal pra ele”. O marginal é diferente, gosta de arruaça, faz bagunça na cidade. Mas o pior de tudo é o bandido, “ele rouba, mata e não tá nem ai se você é jornalista ou não”. Agora os três homens se multiplicaram e somam cerca de quinze.
O malandro, que já morou três anos na Argentina fugindo de mais uma morte, sabe ser invisível. O centro da cidade é cercado de morros e Curitiba tem estratégia: “aqui eu não me meto, tem muita disputa de traficante”. As 20h30 o celular de Curitiba toca, é o despertador avisando que é hora do fantasma de Canasvieiras deixa o centro da cidade para trabalhar. “Lá é um pra um, não gosto de confusão”. Curitiba acha que a vida o levou para o tráfico, e aos 42 anos o tráfico faz de Curitiba um fantasma.
O sol está se pondo na capital de Santa Catarina. Curitiba está sentado no Coreto do centro de Florianópolis. Outros três homens estão com ele. Curitiba bebe cachaça e sorri. A curiosidada fica aguçada e ele quer saber o motivo de tanta pergunta.
Os outros três homens se afastam, Curitiba entende o motivo das perguntas. Um dos homens volta a se aproximar. O centro é movimentado e Curitiba ouve música, “umas músicas ai”.
Até onde sabe, tem filho no Rio Grande do Sul, no Paraná e em Santa Catarina. A mãe também mora em Canasvieiras e cuida de um menino de seis anos; a filha de seis meses está sob a guarda da justiça. A esposa de Curitiba deu a luz há seis meses e agora está presa. O motivo? “Latro... roubo seguido de morte”. O trabalho de Curitiba paga um advogado pra tirar ela da prisão.
Já é noite na cidade de Florianópolis, as luzes dos postes iluminam o rosto descontraído e tenso de Curitiba. Ele também já foi preso. Mas não fica detido por muito tempo, no máximo um dia. Fantasma não tem identidade, não pode ficar preso. Quando ele morreu? A primeira vez foi na cidade de Curitiba mesmo, seu atestado de óbito evitou sua prisão. Para não ser apagado foi para o Rio Grande do Sul onde morreu pela segunda vez. Agora são dois atestados de óbito da mesma pessoa. Pelo mesmo motivo que saiu do Paraná, saiu também do Rio Grande do Sul.
Em Santa Catarina veio tentar a vida na capital. Desembarcou em Canasvieiras. Mas lá já havia cinco homens que faziam o mesmo serviço que Curitiba. Mesmo assim retomou sua atividade em parceria com os atuais líderes. Hoje só Curitiba chefia a região. Dos cinco que trabalhavam lá, dois estão presos e três morreram.
Canasvieiras perdeu seus cinco líderes e ganhou um. Aos poucos os seguidores de Curitiba chegam no Coreto, mas o clima tenso o deixa desconfortável. Curitiba sabe que agora quem quiser trabalhar no mesmo ramo que ele “tem que pedir licença pra entrar”. Mas ele diz que é do bem, porque ele é malandro. O malandro não faz mal a sociedade, só “faz mal pra quem faz mal pra ele”. O marginal é diferente, gosta de arruaça, faz bagunça na cidade. Mas o pior de tudo é o bandido, “ele rouba, mata e não tá nem ai se você é jornalista ou não”. Agora os três homens se multiplicaram e somam cerca de quinze.
O malandro, que já morou três anos na Argentina fugindo de mais uma morte, sabe ser invisível. O centro da cidade é cercado de morros e Curitiba tem estratégia: “aqui eu não me meto, tem muita disputa de traficante”. As 20h30 o celular de Curitiba toca, é o despertador avisando que é hora do fantasma de Canasvieiras deixa o centro da cidade para trabalhar. “Lá é um pra um, não gosto de confusão”. Curitiba acha que a vida o levou para o tráfico, e aos 42 anos o tráfico faz de Curitiba um fantasma.
Única Apresentação
por Carlos Loff
Em frente à catedral. Esse foi o ponto de encontro.
Não demorou muito, e, ali mesmo, surgiu o primeiro personagem. Visto das escadarias uma imagem gritava. Possivelmente não pelo seu jeito transeunte, afinal muitos são anônimos, neste caso uma mulher, possivelmente uma moradora de rua, agora dada como anônima duas vezes.
Ela chama a atenção, quer muito ser notada. Por mais que a visão humana ajuste o foco para registrar qualquer outra informação, seria quase que impossível não enxergá-la
Com uma máscara no rosto e um embrulho nos braços (balançado bruscamente), a mulher, numa primeira impressão, aparentava carregar algo frágil. É como se por um momento uma apresentação de mágicas fosse oferecida. Aqui o amontoado de pano era a sua cartola e na ânsia de esperar pelo coelho, saiu dali uma cadelinha.
Vista de longe a mulher se mostrava infantil, tomada de uma personalidade saltimbanco, como se soubesse que ao entardecer, diante da escadaria da catedral, um picadeiro se montasse ali, e por um momento, uma cortina de pombos se abriu. Coincidentemente sua apresentação foi iniciada.
Interagia com muitos que passavam. Algumas vezes a cadelinha lhe roubava a cena. Logo depois era tomada por um monólogo, tamanha expressividade em seu rosto. Como se desenhasse páginas de sua vida. Como se por muito tempo tivesse tentado contar para alguém a sua história, tudo o que passou, sua escolhas, suas perdas, mas, nas ruas faltam ouvidos, uma vez que elas possuem boca.
E ali ainda estava a cena, a mulher era também maternal, era visível o esmero oferecido ao seu “filhote”. Diante do público alguns lhe esboçavam sorrisos, outros continuavam ao celular, e ainda havia aqueles, cujo ponto fixo, era a contagem regressiva do semáforo.
Para sorte da platéia ela não se importava com as atenções desviadas, é como se bastasse apenas um olhar. Esse supostamente seria a troca, ela não queria aplausos.
E como todo artista talentoso ela recebeu o reconhecimento. A platéia foi até a “coxia” para encontrá-la e saber sobre seu personagem.
O banco da praça, era a sua cadeira e como se um espelho fosse imaginado a sua frente, retirou a maquiagem, neste caso a máscara.
Andréia, este era o seu nome. “Coisinha” é como chamava o seu “filhote”. A artista demonstrava simpatia e atenção, respondia a todas as perguntas, “a mascara? Tuberculose - responde. Um diálogo se fez por tentar diante do público levado até ela, mas, mais (e mais) cachorros aparecem e eles tiram toda a sua atenção.
Andréia vive o presente e mostra não querer falar de trabalho, afinal acabara de fazer uma apresentação. É de se imaginar que para entender a sua história, será preciso assisti-la contada todos os dias, ali, depois que as cortinas de pombos se abrem.
Não demorou muito, e, ali mesmo, surgiu o primeiro personagem. Visto das escadarias uma imagem gritava. Possivelmente não pelo seu jeito transeunte, afinal muitos são anônimos, neste caso uma mulher, possivelmente uma moradora de rua, agora dada como anônima duas vezes.
Ela chama a atenção, quer muito ser notada. Por mais que a visão humana ajuste o foco para registrar qualquer outra informação, seria quase que impossível não enxergá-la
Com uma máscara no rosto e um embrulho nos braços (balançado bruscamente), a mulher, numa primeira impressão, aparentava carregar algo frágil. É como se por um momento uma apresentação de mágicas fosse oferecida. Aqui o amontoado de pano era a sua cartola e na ânsia de esperar pelo coelho, saiu dali uma cadelinha.
Vista de longe a mulher se mostrava infantil, tomada de uma personalidade saltimbanco, como se soubesse que ao entardecer, diante da escadaria da catedral, um picadeiro se montasse ali, e por um momento, uma cortina de pombos se abriu. Coincidentemente sua apresentação foi iniciada.
Interagia com muitos que passavam. Algumas vezes a cadelinha lhe roubava a cena. Logo depois era tomada por um monólogo, tamanha expressividade em seu rosto. Como se desenhasse páginas de sua vida. Como se por muito tempo tivesse tentado contar para alguém a sua história, tudo o que passou, sua escolhas, suas perdas, mas, nas ruas faltam ouvidos, uma vez que elas possuem boca.
E ali ainda estava a cena, a mulher era também maternal, era visível o esmero oferecido ao seu “filhote”. Diante do público alguns lhe esboçavam sorrisos, outros continuavam ao celular, e ainda havia aqueles, cujo ponto fixo, era a contagem regressiva do semáforo.
Para sorte da platéia ela não se importava com as atenções desviadas, é como se bastasse apenas um olhar. Esse supostamente seria a troca, ela não queria aplausos.
E como todo artista talentoso ela recebeu o reconhecimento. A platéia foi até a “coxia” para encontrá-la e saber sobre seu personagem.
O banco da praça, era a sua cadeira e como se um espelho fosse imaginado a sua frente, retirou a maquiagem, neste caso a máscara.
Andréia, este era o seu nome. “Coisinha” é como chamava o seu “filhote”. A artista demonstrava simpatia e atenção, respondia a todas as perguntas, “a mascara? Tuberculose - responde. Um diálogo se fez por tentar diante do público levado até ela, mas, mais (e mais) cachorros aparecem e eles tiram toda a sua atenção.
Andréia vive o presente e mostra não querer falar de trabalho, afinal acabara de fazer uma apresentação. É de se imaginar que para entender a sua história, será preciso assisti-la contada todos os dias, ali, depois que as cortinas de pombos se abrem.
Ao me aproximar descobri
por Alessandra Oliveira
Quem é ela? O que carrega enrolado naqueles panos? Um bebê? Logo pensei... não pode! Como alguém mora na rua com uma criança? Curiosa disparei em sua direção. Ao me aproximar descobri, era um cãozinho. Um filhote de vira-latas. Coisinha era o nome do ser, quase humano, carregado no colo de Andréia. Como um filho, a moradora de rua acalenta seu mais recente melhor amigo. Embora a humana da cachorrinha estivesse malcheirosa, a cadelinha exalava perfume. Os animais, se é que se pode chamá-los assim, são os cobertores no inverno. O melhor casaco de pele para esses moradores do sereno. Além de pêlos, o sangue das veias distribui o calor quando todos se amontoam.
Enquanto esconde um lanche no local mais seguro, o estômago, a garota de 27 anos conta sua história. “Estudei a terceira série tia. Mas esqueci como é que se calcula o tempo. Já não sei há quanto tempo estou na rua”. Ao tirar a máscara clínica usada para pedir dinheiro a moça de silhueta esguia pelo uso crack, afasta o rosto para tossir. Portadora de HIV e tuberculose, Andréia não deseja a doença para seus visitantes. Rodeada por um grupo de amigos quadrúpedes, Déia, como passo a chamá-la, apresenta seus parceiros. Eles aparecem um a um ao serem chamados pelo nome. Pulga, Costela, Menina, Biliquinho, Bonitcha e Negão, chegam abanando o rabinho como que perguntando o que sua humana deseja desta vez. E para todo lado que Déia se locomove, a turma a segue. “Esses são os verdadeiros amigos. Quem acompanharia um pobre e sujo até debaixo de chuva?”
E a fome é uma concubina neste lugar? É sim. No entanto é possível afastá-la a cada dia estendendo a mão aos transeuntes. Muitas vezes os invisíveis conseguem reter a atenção dos passantes, e deste modo obter umas míseras moedinhas. Todo dinheiro é reunido com muita disciplina. O vício exige, tem seu preço e cobra caro, muito caro. A fome não obrigaria à “maguiá”, (pedir) o crack ordena. Uma mísera pedrinha, do tamanho de um dente é o suficiente para um dia se sossego. Do pedaço de antena de rádio, entupido com uma pequena porção de fios de aço, sai a fumaça poderosa, que alivia ânsias de horas e horas. O cachimbo improvisado produz a névoa necessária para quem um dia resolveu se aproximar de seu inebriante poder. Déia afirma que não costuma beber a não ser quando inala. E já que o faz todos os dias... um gole aqui outro ali faz parte do ritual.
E amor há na rua? Ela garante que onde há “tóchico”, há amor. Sem a droga as brigas sobressaem e o que sobra são as cicatrizes dos gargalos de garrafa. Paus e pedras não são dispensados se estiveram por perto numa hora de fúria. Marcada no braço pela última briga, Déia avisa que também deixou uma grande cicatriz no companheiro. Juntos na rua há muito tempo, os dois dividem a atenção dos cães, a comida, o cobertor... e seus corpos. O leito de ambos é o mármore do coreto da Praça XV.
Mãe de um garoto de 12 anos Andréia se diz satisfeita com a escolha da rua. Seu filho está com a avó. Livre, sem horários, nem contas, sem preocupações com o trânsito ou com datas, sem e-mails para responder a garota pode ter uma vida que não é nem de longe o que uma mãe desejaria para um filho, mas, é o uso que a jovem faz de seu livre arbítrio. Por que olhar de canto ou fingir não vê-los? Acaso alguém deixa de ser gente por não tomar banho ou pagar impostos? Bobagem!
Minha amiga se diz feliz na rua e conta que ali aprendeu a cozinhar feijão, galinha e fritar ovos. “O David cozinha bem. Ele pega qualquer uma pelo estômago”, garante. Na hora da foto, Déia se preocupa com o cabelo despenteado. Talvez a última vaidade da moradora externa.
Andréia não escapou de uma desvantagem das pessoas ditas comuns... ter uma sogra. A mãe de David, dona Lorita conta que resolveu passar um tempo na rua para resgatar o filho. Ainda que tranqüila ela é a sogra, um estereótipo social. Lorita possui misteriosos olhos azuis, levemente acinzentados. A brava mãe preferiu estar perto do filho ainda que na rua, a viver preocupada longe de sua cria. Esta sogra é diferente. Não se mete muito na vida da nora, no entanto, não se afasta do filho. Como mãe de rebento Lorita anda em voltas, sempre tentando parecer invisível para o filho que não se agrada da presença da mãe na rua.
E foi ao me aproximar que descobri o custo de um banho. Quatro ou cinco reais. Não vale a pena. Com um pouco mais se pode adquirir uma pedrinha amiga. Déia afirma ser viciada, mas jamais ladra. Enquanto conversávamos, ela não sossegava. A hora de arrecadar recursos para alimetar seu algoz se aproximava. Déia se despede e vai “manguiá”. Aprendi como uma mulher cuida de seu ciclo mensal, de como se utiliza da desconfiança como sua maior proteção.
Voltei outro dia e procurei por Andréia. A rua não podia mais ser sua casa. Não por enquanto. Após uma briga com seu companheiro a moça quebrou um vaso da praça e foi levada pela polícia ao presídio feminino. David, livre, no entanto preso pelo coração à companheira, tenta articular a liberação da amada. Na ausência de Déia, ele se apega mais ainda aos cães. Sem dinheiro, sobrenome ou reputação o rapaz não tem voz, nem advogados e espera pela decisão da justiça quanto ao futuro de sua parceira.
Nesta visita aprendi que dona Lorita não era tão insana quanto se mostrava. A mania de repetir as mesmas frases e se esconder na religião era tão somente seu meio de defesa. Ao ver a preocupação de David com a companheira, Lorita se sentiu rejeitada e decidiu voltar para casa. “Vou voltar para meu canto, já que sou ignorada”.
E a historia continua. Dia após dia o tempo cuidará de alternar o elenco e mudar as vozes...
A rua é uma casa. È o lar de quem a escolheu ou foi por ela escolhido. Impressões que só tem quem se aproxima para descobrir.
Enquanto esconde um lanche no local mais seguro, o estômago, a garota de 27 anos conta sua história. “Estudei a terceira série tia. Mas esqueci como é que se calcula o tempo. Já não sei há quanto tempo estou na rua”. Ao tirar a máscara clínica usada para pedir dinheiro a moça de silhueta esguia pelo uso crack, afasta o rosto para tossir. Portadora de HIV e tuberculose, Andréia não deseja a doença para seus visitantes. Rodeada por um grupo de amigos quadrúpedes, Déia, como passo a chamá-la, apresenta seus parceiros. Eles aparecem um a um ao serem chamados pelo nome. Pulga, Costela, Menina, Biliquinho, Bonitcha e Negão, chegam abanando o rabinho como que perguntando o que sua humana deseja desta vez. E para todo lado que Déia se locomove, a turma a segue. “Esses são os verdadeiros amigos. Quem acompanharia um pobre e sujo até debaixo de chuva?”
E a fome é uma concubina neste lugar? É sim. No entanto é possível afastá-la a cada dia estendendo a mão aos transeuntes. Muitas vezes os invisíveis conseguem reter a atenção dos passantes, e deste modo obter umas míseras moedinhas. Todo dinheiro é reunido com muita disciplina. O vício exige, tem seu preço e cobra caro, muito caro. A fome não obrigaria à “maguiá”, (pedir) o crack ordena. Uma mísera pedrinha, do tamanho de um dente é o suficiente para um dia se sossego. Do pedaço de antena de rádio, entupido com uma pequena porção de fios de aço, sai a fumaça poderosa, que alivia ânsias de horas e horas. O cachimbo improvisado produz a névoa necessária para quem um dia resolveu se aproximar de seu inebriante poder. Déia afirma que não costuma beber a não ser quando inala. E já que o faz todos os dias... um gole aqui outro ali faz parte do ritual.
E amor há na rua? Ela garante que onde há “tóchico”, há amor. Sem a droga as brigas sobressaem e o que sobra são as cicatrizes dos gargalos de garrafa. Paus e pedras não são dispensados se estiveram por perto numa hora de fúria. Marcada no braço pela última briga, Déia avisa que também deixou uma grande cicatriz no companheiro. Juntos na rua há muito tempo, os dois dividem a atenção dos cães, a comida, o cobertor... e seus corpos. O leito de ambos é o mármore do coreto da Praça XV.
Mãe de um garoto de 12 anos Andréia se diz satisfeita com a escolha da rua. Seu filho está com a avó. Livre, sem horários, nem contas, sem preocupações com o trânsito ou com datas, sem e-mails para responder a garota pode ter uma vida que não é nem de longe o que uma mãe desejaria para um filho, mas, é o uso que a jovem faz de seu livre arbítrio. Por que olhar de canto ou fingir não vê-los? Acaso alguém deixa de ser gente por não tomar banho ou pagar impostos? Bobagem!
Minha amiga se diz feliz na rua e conta que ali aprendeu a cozinhar feijão, galinha e fritar ovos. “O David cozinha bem. Ele pega qualquer uma pelo estômago”, garante. Na hora da foto, Déia se preocupa com o cabelo despenteado. Talvez a última vaidade da moradora externa.
Andréia não escapou de uma desvantagem das pessoas ditas comuns... ter uma sogra. A mãe de David, dona Lorita conta que resolveu passar um tempo na rua para resgatar o filho. Ainda que tranqüila ela é a sogra, um estereótipo social. Lorita possui misteriosos olhos azuis, levemente acinzentados. A brava mãe preferiu estar perto do filho ainda que na rua, a viver preocupada longe de sua cria. Esta sogra é diferente. Não se mete muito na vida da nora, no entanto, não se afasta do filho. Como mãe de rebento Lorita anda em voltas, sempre tentando parecer invisível para o filho que não se agrada da presença da mãe na rua.
E foi ao me aproximar que descobri o custo de um banho. Quatro ou cinco reais. Não vale a pena. Com um pouco mais se pode adquirir uma pedrinha amiga. Déia afirma ser viciada, mas jamais ladra. Enquanto conversávamos, ela não sossegava. A hora de arrecadar recursos para alimetar seu algoz se aproximava. Déia se despede e vai “manguiá”. Aprendi como uma mulher cuida de seu ciclo mensal, de como se utiliza da desconfiança como sua maior proteção.
Voltei outro dia e procurei por Andréia. A rua não podia mais ser sua casa. Não por enquanto. Após uma briga com seu companheiro a moça quebrou um vaso da praça e foi levada pela polícia ao presídio feminino. David, livre, no entanto preso pelo coração à companheira, tenta articular a liberação da amada. Na ausência de Déia, ele se apega mais ainda aos cães. Sem dinheiro, sobrenome ou reputação o rapaz não tem voz, nem advogados e espera pela decisão da justiça quanto ao futuro de sua parceira.
Nesta visita aprendi que dona Lorita não era tão insana quanto se mostrava. A mania de repetir as mesmas frases e se esconder na religião era tão somente seu meio de defesa. Ao ver a preocupação de David com a companheira, Lorita se sentiu rejeitada e decidiu voltar para casa. “Vou voltar para meu canto, já que sou ignorada”.
E a historia continua. Dia após dia o tempo cuidará de alternar o elenco e mudar as vozes...
A rua é uma casa. È o lar de quem a escolheu ou foi por ela escolhido. Impressões que só tem quem se aproxima para descobrir.
Imagens e Retratos da Vida Real
A grande maioria dos moradores de rua em Florianópolis é do sexo masculino e tem o primeiro grau incompleto. Pelo menos é essa a percepção que nos deu a vivência jornalística nas ruas da cidade.
Os fatos são tão chocantes, a realidade tão dramática, que parece mentira. A angústia de se viver diante das ruas e basicamente abaixo do céu faça sol ou chuva, presenciando a fome, a sede de água limpa e o desejo por um banho que já virara utopia... Tudo é tão cruel que fica difícil acreditar. As vestes não somente têm a cor da labuta como também transpiram o incansável sofrimento de se deitar incontáveis dias nas calçadas e paralelepípedos. Permanecer com a mesma roupa em mais um longo dia de mendicância é algo que já faz parte do cotidiano.
“A maioria aqui usa drogas e depende do álcool. Tem que ser assim pra suportar essa vida”, desabafa Luiz, morador de rua há mais de 30 anos. O sol se põe, os primeiros sinais da noite surgem e com eles a fumaça de cigarros já transcende o que ainda está por vir. A droga parece remédio que cura o sofrimento de não ter um lar. É um tipo de farsa, que encobre as ruínas dessa vida tão injusta. Um praz que ajuda a esquecer e viver com menos intensidade as dificuldades de cada dia.
Muitos não têm alternativa às ruas, mas outros possuem casa, família e estudo, mas ficam na rua por opção, pelo fato de não se dar bem na convivência familiar, ou para conseguir dinheiro, juntando embalagens retornáveis e vendendo para aproveitamento de reciclados. E na falta de companheiros de sangue, a afinidade com os colegas torna-se muito maior, vira sinônimo de cumplicidade. E quando isso não ocorre, o afeto é dedicado a um bichinho “indefeso”, batizado como melhor amigo do homem.
As doações são sempre bem-vindas. Aliás, muitos dos moradores de rua dependem delas para seu sustento, pois não é sempre que o árduo trabalho de catação de lixo é recompensado ao fim do dia.
O que parece mais entristecer esses moradores é o fato de as pessoas demonstrarem indiferença com essa situação. Quando passam, ignoram, fingem não estar vendo essa realidade tão nítida e ao mesmo tempo invisível em quase todas as esquinas e praças da cidade. E caso haja comoção, ela é momentânea. Minutos depois a pessoa já retoma seu caminho e esquece a cena que presenciou.
É a partir daí que necessita a mudança na nossa sociedade. O desprezo não leva a lugar algum, não traz benefícios e muito menos resolve os problemas do mundo. Mas enxergar a realidade viva e tomar consciência do seu papel na sociedade pode trazer resultados benéficos de cidadãos comprometidos e responsáveis com o futuro e bem-estar de todos os habitantes de sua cidade.
Mais de 32 mil cidadãos moram hoje nas ruas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em pesquisa realizada no ano passado. Diante disso, os mendigos pedem oportunidades de inserção social. “A gente quer ser visto como gente” ressalta Luiz. “Um pão hoje mata a minha fome, mas não garante minha comida de amanhã. Um emprego era o que eu queria”, acrescenta ele, garantindo que doação e esmola não resolvem os problemas dos moradores.
E assim eles vivem na esperança de que o dia seguinte será muito melhor trazendo uma vida digna para todos.
Os fatos são tão chocantes, a realidade tão dramática, que parece mentira. A angústia de se viver diante das ruas e basicamente abaixo do céu faça sol ou chuva, presenciando a fome, a sede de água limpa e o desejo por um banho que já virara utopia... Tudo é tão cruel que fica difícil acreditar. As vestes não somente têm a cor da labuta como também transpiram o incansável sofrimento de se deitar incontáveis dias nas calçadas e paralelepípedos. Permanecer com a mesma roupa em mais um longo dia de mendicância é algo que já faz parte do cotidiano.
“A maioria aqui usa drogas e depende do álcool. Tem que ser assim pra suportar essa vida”, desabafa Luiz, morador de rua há mais de 30 anos. O sol se põe, os primeiros sinais da noite surgem e com eles a fumaça de cigarros já transcende o que ainda está por vir. A droga parece remédio que cura o sofrimento de não ter um lar. É um tipo de farsa, que encobre as ruínas dessa vida tão injusta. Um praz que ajuda a esquecer e viver com menos intensidade as dificuldades de cada dia.
“A maioria usa drogas
pra suportar essa vida”
pra suportar essa vida”
Muitos não têm alternativa às ruas, mas outros possuem casa, família e estudo, mas ficam na rua por opção, pelo fato de não se dar bem na convivência familiar, ou para conseguir dinheiro, juntando embalagens retornáveis e vendendo para aproveitamento de reciclados. E na falta de companheiros de sangue, a afinidade com os colegas torna-se muito maior, vira sinônimo de cumplicidade. E quando isso não ocorre, o afeto é dedicado a um bichinho “indefeso”, batizado como melhor amigo do homem.
As doações são sempre bem-vindas. Aliás, muitos dos moradores de rua dependem delas para seu sustento, pois não é sempre que o árduo trabalho de catação de lixo é recompensado ao fim do dia.
O que parece mais entristecer esses moradores é o fato de as pessoas demonstrarem indiferença com essa situação. Quando passam, ignoram, fingem não estar vendo essa realidade tão nítida e ao mesmo tempo invisível em quase todas as esquinas e praças da cidade. E caso haja comoção, ela é momentânea. Minutos depois a pessoa já retoma seu caminho e esquece a cena que presenciou.
É a partir daí que necessita a mudança na nossa sociedade. O desprezo não leva a lugar algum, não traz benefícios e muito menos resolve os problemas do mundo. Mas enxergar a realidade viva e tomar consciência do seu papel na sociedade pode trazer resultados benéficos de cidadãos comprometidos e responsáveis com o futuro e bem-estar de todos os habitantes de sua cidade.
Mais de 32 mil cidadãos moram hoje nas ruas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em pesquisa realizada no ano passado. Diante disso, os mendigos pedem oportunidades de inserção social. “A gente quer ser visto como gente” ressalta Luiz. “Um pão hoje mata a minha fome, mas não garante minha comida de amanhã. Um emprego era o que eu queria”, acrescenta ele, garantindo que doação e esmola não resolvem os problemas dos moradores.
E assim eles vivem na esperança de que o dia seguinte será muito melhor trazendo uma vida digna para todos.
O Teto de Estrelas
por Laís Vieira
Nada melhor do que conviver para poder falar. Não é chegar vestido com uma roupa imutável de jornalista. É humildemente chegar. Humildemente conversar, olhar nos olhos e desenrolar um diálogo. É viver uma vida que sempre fizemos questão de nos distanciar, fingir que não víamos e até mesmo atravessar a rua quando víamos um morador dessa casa sem paredes, divisórias, ou teto.
Nome, idade, se usa drogas ou não e ‘profissão’ dão lugar a perguntas mais agradáveis/sentimentais. Respostas que nos permitem sentir o que sente o personagem. O desafio do “como perguntar” caminha junto com a insegurança do desconhecido e a dificuldade de muitas vezes entender o dialeto particular dos moradores de rua.
Um mês, um ano, 10 anos, o tempo pouco importa. O motivo: brigas em casa. Geralmente por causa de drogas. O álcool é parceiro fiel no cair da noite, mas não são os únicos parceiros. Cães e amigos compõem o cenário. Quando interrogados quanto a parcerias, André* abre um sorriso e pronuncia “família, né!” e aponta para a camiseta azul com o escrito amarelo “A união faz a força”. E pelo visto tem feito. Para André, que está há 10 anos na rua, os amigos dividem o espaço, os trabalhos de guardador e lavador de carros e o que conseguem comprar de comida e bebidas.
A vida de quem acorda junto com os primeiros raios solares do dia nos mostra as dificuldades de um centro tão grande de uma grande capital brasileira não se achar sossego para instala suas ‘jegas’ (camas). Embaixo da figueira ou dos toldos da cidade, eles tentam achar dormir e se proteger, seja do frio, chuva ou de gente. Às vezes, a vontade de andar pela cidade é solitária. E essa solidão leva André a ter crises de ausência de qualquer resquício de auto-estima.
Para ele, o que mais pesa e o deixa “meio assim... sei lá” é essa baixa auto estima causada pela “falta daquela segunda chance, uma oportunidade cedida pela família, do povo e até da prefeitura, que fica embarreirando o nosso crescimento, nosso melhoramento de vida” – diz André.
A vida nas ruas que aparenta ser tão perigosa, nos mostra um lugar cujos moradores a chamam de “minha casa”. A rua proporciona sofrimento, ao mesmo tempo em que acolhe e judia. E eles aprendem a se virar mesmo com as adversidades. Estender o tapete de Lar doce Lar nas praças e nos bancos da cidade os torna sem número, sem teto, literalmente sem lenço e sem documento, mas a maioria deles sonha com algo melhor, e ainda tem o que Cléber chamou de esperança.
Esperança que podemos ver brilhar nos olhos daqueles que por tão poucas vezes tiveram atenção de tanta gente tão interessada. Suas famílias se interessam muito pouco ou quase nada pelo rumo que suas vidas tomaram.
Meu desejo era mais que as linhas da reportagem era um desejo misto com interesse na vida desses moradores das ruas. E que eles não são nem melhores nem piores do que qualquer outro por não terem dinheiro para pagar aluguel, ainda mais que a porta da casa de suas famílias estará sempre fechada para eles enquanto houverem drogas envolvidas e falta de apoio para sair da rua.
Nome, idade, se usa drogas ou não e ‘profissão’ dão lugar a perguntas mais agradáveis/sentimentais. Respostas que nos permitem sentir o que sente o personagem. O desafio do “como perguntar” caminha junto com a insegurança do desconhecido e a dificuldade de muitas vezes entender o dialeto particular dos moradores de rua.
Um mês, um ano, 10 anos, o tempo pouco importa. O motivo: brigas em casa. Geralmente por causa de drogas. O álcool é parceiro fiel no cair da noite, mas não são os únicos parceiros. Cães e amigos compõem o cenário. Quando interrogados quanto a parcerias, André* abre um sorriso e pronuncia “família, né!” e aponta para a camiseta azul com o escrito amarelo “A união faz a força”. E pelo visto tem feito. Para André, que está há 10 anos na rua, os amigos dividem o espaço, os trabalhos de guardador e lavador de carros e o que conseguem comprar de comida e bebidas.
A vida de quem acorda junto com os primeiros raios solares do dia nos mostra as dificuldades de um centro tão grande de uma grande capital brasileira não se achar sossego para instala suas ‘jegas’ (camas). Embaixo da figueira ou dos toldos da cidade, eles tentam achar dormir e se proteger, seja do frio, chuva ou de gente. Às vezes, a vontade de andar pela cidade é solitária. E essa solidão leva André a ter crises de ausência de qualquer resquício de auto-estima.
Para ele, o que mais pesa e o deixa “meio assim... sei lá” é essa baixa auto estima causada pela “falta daquela segunda chance, uma oportunidade cedida pela família, do povo e até da prefeitura, que fica embarreirando o nosso crescimento, nosso melhoramento de vida” – diz André.
A vida nas ruas que aparenta ser tão perigosa, nos mostra um lugar cujos moradores a chamam de “minha casa”. A rua proporciona sofrimento, ao mesmo tempo em que acolhe e judia. E eles aprendem a se virar mesmo com as adversidades. Estender o tapete de Lar doce Lar nas praças e nos bancos da cidade os torna sem número, sem teto, literalmente sem lenço e sem documento, mas a maioria deles sonha com algo melhor, e ainda tem o que Cléber chamou de esperança.
Esperança que podemos ver brilhar nos olhos daqueles que por tão poucas vezes tiveram atenção de tanta gente tão interessada. Suas famílias se interessam muito pouco ou quase nada pelo rumo que suas vidas tomaram.
Meu desejo era mais que as linhas da reportagem era um desejo misto com interesse na vida desses moradores das ruas. E que eles não são nem melhores nem piores do que qualquer outro por não terem dinheiro para pagar aluguel, ainda mais que a porta da casa de suas famílias estará sempre fechada para eles enquanto houverem drogas envolvidas e falta de apoio para sair da rua.
Casos de Família
por Roger Maurício Caetano
“Esta é minha sogra”, expõe Andréia, apontando para uma senhora que observa nossa equipe de reportagem há certa distancia com cautela. “Meu marido está logo ali no coreto” diz ela sentada em uma mureta da Praça XV com um cachorrinho, que ela chama carinhosamente de coisinha, enrolando em um pano como se fosse uma criança de colo, enquanto aguarda o cachorro-quente, que oferecemos ficar pronto. Andréia chama sua sogra para se juntar a nós e a apresenta. “O nome dela é Lorita e mora conosco aqui na praça”, explica a moradora de rua.
No Brasil eles somam cerca de 1,8 milhão. Em Florianópolis, a secretária de Assistência Social diz que eles são uma média de 150. “Uma população invisível. Muitos são de fora e estão só de passagem, mas boa parte é daqui, tem família e estão na rua por opção”, declara Irma Remor Silva, coordenadora do projeto Abordagem de Rua que cadastra e dá assistência aos moradores de rua da capital.
A declaração da coordenadora vai ao encontro do que dona Lorita contou sobre sua vida. A velha senhora revelou depois de muita insistência que era da cidade de Caçador e estava ali há cerca de um mês por opção, pois queria tirar o filho David daquela vida com drogas. ”Deus tá me ajudando; tenho meu trabalho e vou alugar uma kitnete”. Discreta, ela evitou ao máximo revelar detalhes sobre sua vida, sempre desviando as respostas para coisas como “só Deus sabe meu filho”. Quando indagada sua idade, dona Lorita prefere não responder. Suas roupas surradas e seus cabelos sem pintura dão a impressão dela estar beirando os 70 anos.
Após muitas tentativas sem sucesso de tentar entrevistar dona Lorita, resolvemos saber mais com sua nora Andréia e o filho David. Andréia demonstra na aparência ter uma saúde muito debilitada. Muito magra, declara ser soropositiva e diz ter tuberculose e por esse motivo anda com uma máscara hospitalar. Informação que foi posta em dúvida pela coordenadora do projeto Abordagem de Rua revelando que muitos indigentes usam essas máscaras apenas para esmolar. Qualquer que seja o fato, Andréia obviamente tem uma saúde muito debilitada e diz que contraiu o HIV fazendo programas para sustentar seu vício em crack. Durante a entrevista ela pediu dinheiro várias vezes para comprar a droga. Isso facilitou que pudéssemos se aproximar mais dela e sermos apresentados a David.
David, o marido de Andréia é uma figura caricata entre os moradores de rua, sempre acompanhado de cachorros, usa dreads e tem um longo cavanhaque. Encontramos ele andando de skate na Praça XV, numero em algarismo romano que ele traz tatuado no peito, e o identifica como um morador da praça. David fala que é viciado em crack e diz que está naquela vida porque foi rejeitado por sua mãe quando criança em detrimento de seus outros irmãos.
No segundo dia quando voltamos à praça, descobrimos que Andréia havia sido presa na noite anterior por ter quebrado um vaso em uma discussão com David. Ele diz que não é atendido na delegacia e nos pede para averiguarmos notícias dela. Lá descobrimos que foi transferida para a carceragem feminina da Agronômica. Em uma tentativa de fazermos contato com a direção do presídio, o funcionário que atendeu ao telefone confirma que Andréia está presa no local, mas não diz estár ciente de que ela é soropositiva.
No terceiro dia em que voltamos a falar com David, o encontramos bêbado com uma garrafa de cachaça nas mãos. “Eu bebo para conter a fissura do crack”, explica ele. Eu dou as notícias sobre Andréia, mas ele parece não dar muita importância e apenas quer ficar deitado no coreto da Praça XV com os cachorros. Mais tarde ele diz q vai trabalhar e pouco tempo depois volta com algumas moedas para então sair novamente e retornar com um pouco de crack que vai fumar ali mesmo. Manter uma conversa com ele é difícil e resolvo ir embora.
No quarto e último dia encontro David deitado no mesmo lugar onde o vi pela última vez. Ele está dormindo e quando acordado parece não querer conversar. Perguntamos por sua mãe e ele revela que brigaram. Pede para conversarmos com ela longe dali. Quando a encontramos, ela diz que tem uma “novidade” para nos contar. Para não criar caso tentamos evitar que vá até o coreto onde David está, mas é tudo em vão, pois ela insiste para ir até lá para contar a “novidade”.
Dona Lorita senta em um dos banquinhos e vagarosamente começa a contar a tal novidade. David está deitado há uns cinco metros dali ouvindo nossa conversa.
-Pois é meu filho, eu tinha uns documentos perdidos.
-Que documentos? Pergunto eu.
-Da aposentadoria, diz sorrindo.
-A senhora vai se aposentar?
-Vou, finalmente. Deus sempre ajuda a gente!
-Vai alugar a kitnete?
-Não, vou voltar para minha cidade.
-Ameemmmmmm! Grita David se retirando dali. Com desprezo.
Dona Lorita explica a partir de então que não vê mais motivos para ficar ali, já que David não quer largar aquela vida de drogas e violência, “eles só sabem fumar drogas e baterem uns nos outros com o skate”.
Quando pergunto a David sobre a saída de sua mãe, ele fala com um tom de voz magoado e diz: “Ela estava até aqui agora porque precisava de mim. Assim que saiu a aposentadoria, me deixou”.
No Brasil eles somam cerca de 1,8 milhão. Em Florianópolis, a secretária de Assistência Social diz que eles são uma média de 150. “Uma população invisível. Muitos são de fora e estão só de passagem, mas boa parte é daqui, tem família e estão na rua por opção”, declara Irma Remor Silva, coordenadora do projeto Abordagem de Rua que cadastra e dá assistência aos moradores de rua da capital.
A declaração da coordenadora vai ao encontro do que dona Lorita contou sobre sua vida. A velha senhora revelou depois de muita insistência que era da cidade de Caçador e estava ali há cerca de um mês por opção, pois queria tirar o filho David daquela vida com drogas. ”Deus tá me ajudando; tenho meu trabalho e vou alugar uma kitnete”. Discreta, ela evitou ao máximo revelar detalhes sobre sua vida, sempre desviando as respostas para coisas como “só Deus sabe meu filho”. Quando indagada sua idade, dona Lorita prefere não responder. Suas roupas surradas e seus cabelos sem pintura dão a impressão dela estar beirando os 70 anos.
Após muitas tentativas sem sucesso de tentar entrevistar dona Lorita, resolvemos saber mais com sua nora Andréia e o filho David. Andréia demonstra na aparência ter uma saúde muito debilitada. Muito magra, declara ser soropositiva e diz ter tuberculose e por esse motivo anda com uma máscara hospitalar. Informação que foi posta em dúvida pela coordenadora do projeto Abordagem de Rua revelando que muitos indigentes usam essas máscaras apenas para esmolar. Qualquer que seja o fato, Andréia obviamente tem uma saúde muito debilitada e diz que contraiu o HIV fazendo programas para sustentar seu vício em crack. Durante a entrevista ela pediu dinheiro várias vezes para comprar a droga. Isso facilitou que pudéssemos se aproximar mais dela e sermos apresentados a David.
David, o marido de Andréia é uma figura caricata entre os moradores de rua, sempre acompanhado de cachorros, usa dreads e tem um longo cavanhaque. Encontramos ele andando de skate na Praça XV, numero em algarismo romano que ele traz tatuado no peito, e o identifica como um morador da praça. David fala que é viciado em crack e diz que está naquela vida porque foi rejeitado por sua mãe quando criança em detrimento de seus outros irmãos.
No segundo dia quando voltamos à praça, descobrimos que Andréia havia sido presa na noite anterior por ter quebrado um vaso em uma discussão com David. Ele diz que não é atendido na delegacia e nos pede para averiguarmos notícias dela. Lá descobrimos que foi transferida para a carceragem feminina da Agronômica. Em uma tentativa de fazermos contato com a direção do presídio, o funcionário que atendeu ao telefone confirma que Andréia está presa no local, mas não diz estár ciente de que ela é soropositiva.
No terceiro dia em que voltamos a falar com David, o encontramos bêbado com uma garrafa de cachaça nas mãos. “Eu bebo para conter a fissura do crack”, explica ele. Eu dou as notícias sobre Andréia, mas ele parece não dar muita importância e apenas quer ficar deitado no coreto da Praça XV com os cachorros. Mais tarde ele diz q vai trabalhar e pouco tempo depois volta com algumas moedas para então sair novamente e retornar com um pouco de crack que vai fumar ali mesmo. Manter uma conversa com ele é difícil e resolvo ir embora.
No quarto e último dia encontro David deitado no mesmo lugar onde o vi pela última vez. Ele está dormindo e quando acordado parece não querer conversar. Perguntamos por sua mãe e ele revela que brigaram. Pede para conversarmos com ela longe dali. Quando a encontramos, ela diz que tem uma “novidade” para nos contar. Para não criar caso tentamos evitar que vá até o coreto onde David está, mas é tudo em vão, pois ela insiste para ir até lá para contar a “novidade”.
Dona Lorita senta em um dos banquinhos e vagarosamente começa a contar a tal novidade. David está deitado há uns cinco metros dali ouvindo nossa conversa.
-Pois é meu filho, eu tinha uns documentos perdidos.
-Que documentos? Pergunto eu.
-Da aposentadoria, diz sorrindo.
-A senhora vai se aposentar?
-Vou, finalmente. Deus sempre ajuda a gente!
-Vai alugar a kitnete?
-Não, vou voltar para minha cidade.
-Ameemmmmmm! Grita David se retirando dali. Com desprezo.
Dona Lorita explica a partir de então que não vê mais motivos para ficar ali, já que David não quer largar aquela vida de drogas e violência, “eles só sabem fumar drogas e baterem uns nos outros com o skate”.
Quando pergunto a David sobre a saída de sua mãe, ele fala com um tom de voz magoado e diz: “Ela estava até aqui agora porque precisava de mim. Assim que saiu a aposentadoria, me deixou”.
“Queria ser rico, para ajudar todo mundo”
por Laís Campos Moser
Eduardo, morador de rua há 15 anos, fala das dificuldades de
sua situação e conta seus sonhos e ambições.
sua situação e conta seus sonhos e ambições.
Encontrei Eduardo no centro da cidade, ao anoitecer, em baixo de uma grande marquise, em um local pelo qual costumava passar sempre. Nunca o havia visto. Se alguma vez o vi, nunca realmente o enxerguei. Como seria possível? Já que agora parece ser tão difícil esquecê-lo. “Queria ser rico, para ajudar todo mundo”. Pelo pouco que conheci de Eduardo, 36 anos, morador de rua de Florianópolis, talvez essa seja a frase que melhor o define.
Enquanto diversos moradores de rua passam de um lado para o outro, recolhendo papelões deixados pelas lojas nas calçadas, e ajeitando-os entre o chão e a parede do prédio comercial, converso com Eduardo. Estava falando com um morador de rua, Carlos, quando ele chamou Eduardo para conversar comigo, se ausentando. Começamos nosso diálogo, ou melhor, nosso monólogo, pois ele tinha muito a dizer, e eu, muito a escutar.
Parecia não querer parar de falar. Emendava um tema em outro, repetia os mesmos assuntos; eu tinha que estar atenta às pausas de sua respiração para conseguir formular-lhe algumas perguntas. Eduardo é de Caçador, está na rua há 15 anos, e hoje vive na companhia de quatro amigos: “somos andarilhos”, define o grupo.
Estudou até metade do ensino médio e hoje trabalha com pulseiras e chaveiros. “Pintura e letreiro. A única coisa que gosto de fazer é isso”, chega à conclusão. Seu orçamento é complementado por um dinheiro que recebe do governo, devido a um pino que possui na perna direita. Pergunto sobre como é morar nas ruas, já imaginando a resposta. Mas a verdade é que embora Eduardo me responda, e se todos os moradores de rua do mundo também o fizessem, creio que jamais saberia por completo. “É difícil. Para comer você tem que mendigar um prato de comida numa lanchonete. E todo mundo chama a gente de vadio, vagabundo. Roubar a gente não rouba. E quando a gente vai pedir um dinheiro, não dão (...). Pela educação que a gente tem, a gente já pediu ajuda da prefeitura, mas eles não dão. Eu trabalho, ganho meu sustento, faço brincos, chaveiros. Mas queríamos um apoio para sair dessa vida. De repente você passa calor, de repente frio, de repente pega chuva. Como mal. Essa vida é triste”.
Durante nossas quase duas horas de conversa, sobre o que mais Eduardo fala é de seu vício no álcool – e de sua vontade em vencê-lo. “Nunca fui ladrão. Não cheiro, não uso drogas. A única é a cachaça. Sou dependente do vício do álcool. Se eu parar direto, me dá uma convulsão”. Eduardo foi ao médico, para tratar seu vício. Quem pagou a consulta foi sua mulher, de 60 anos, que mora em Porto Alegre, com o filho deles, Lucas, de seis. Com a consulta médica, aprendeu que tem que parar aos poucos. “Se você toma um litro, tome meio e vai diminuindo. Quando você ver, você parou. Vai da consciência”, afirmou. Sua mulher, de Porto Alegre, veio lhe buscar, mas impôs-lhe uma condição: que abandonasse o álcool. “Eu vou fazer de tudo, eu vou deixar a cachaça. Nem que eu sofra, mas eu vou deixar. Eu amo ela”. Eduardo tira sua carteira do bolso e me mostra, quase que com devoção, uma foto três por quatro, preta e branca, de sua mulher. “Ela tem dinheiro, pagou uma consulta pra mim”. No dia seguinte ele teria uma consulta de dentista, paga também por ela, para consertar um dente semi quebrado.
A todo instante Eduardo volta a falar de seu vício. Nessas horas, olha fixamente para o horizonte e afirma que conseguirá deixar a bebida. “A partir de sábado não vou colocar mais um gole de álcool na boca. Eu vou vencer e vou ser feliz. É só eu querer. A sua cabeça é o seu mestre. Se você não tiver inteligência e humildade, você não consegue nada. Faz 12 anos que parei de fumar. Compro para eles, mas não fumo”. Eduardo tira uma carteira de cigarro do bolso, me mostra, e volta a guardá-la. Em outro momento de nossa conversa, um morador de rua veio lhe pedir cigarro. Ele, gentilmente, tirou um da carteira, e deu ao que pedia. Voltou a guardá-la.
Em dado momento da conversa, Eduardo me fala: “Queria ser rico, para ajudar todo mundo. Queria comprar um barracão para botar todo mundo. Mas cada um que se vire, trabalhe, procure sua comida. Nem o prefeito que é prefeito faz isso”. Confesso que antes de me encontrar com Eduardo, estava com receio de me deparar com a agressividade. Mas tudo o que encontrei foi confiança, educação e sinceridade. Ele me conta sobre o que costumam falar dele: “Eduardo, você dom pra ser um padre, um pastor. Não tem ninguém que fale mal de você, você ajuda todo mundo”. Ele olha para um morador de rua, que está bêbado, vestido com roupas velhas, deitado sobre um papelão, ao nosso lado, e desabafa: “Se não é eu cuidar dele, fazer ele tomar um remédio... pesa pra mim, porque é sempre nas minhas costas”.
Conta-me de uma conversa que teve com o Padre Pedro Keller:
- Eu tenho a certeza que um dia você vai estar no altar da minha Igreja.
- Hoje o senhor conversa com Ele. Quem sabe amanhã, eu converse com Ele.
Em determinado momento da conversa, uma moradora de rua, Geni, interrompe nossa conversa, com uma faca na mão, pedindo que Eduardo lhe ajude com algo. Ele me apresenta a mulher, ela me responde com um sorriso simpático e cansado. Pergunto se quer ir ajudá-la. Ele continua a conversa. Diz-me que tem data marcada para sair das ruas. Era terça-feira e, naquele domingo próximo, se mudaria para uma casa alugada, no Estreito. “Domingo vamos alugar uma casa. Vou sair dessa vida; só está dando desgraça pra gente. A prefeitura só quer colocar a gente debaixo do esgoto. Ganho um dinheiro porque tenho pino na perna, por isso tô alugando uma casa”. Sobre Geni, comenta com zelo: “Não vou deixar ela na mão Desculpe a palavra, mas ela não é vagabunda. É uma mulher digna, respeitada. Eu que tirei ela da droga (crack). E eu gosto dela. Eu vou tirar do meu bolso e pagar para ela a casa”.
Eduardo me olha fixamente e afirma gesticulando com as mãos: “Sou um ser humano, você é um ser humano, ela é um ser humano. A voz de você não é sua, é de Deus. Eu já vi nos teus olhos”. Me emociono, ele também. Retira de seu pulso uma pulseira de pedra, cinza escura, feita por ele, e coloca no meu. Pergunto qual seu maior sonho: “Deixar o meu vício e voltar pra minha mulher e meu filho”.
Na semana seguinte voltei ao mesmo local. Eduardo não estava mais lá. Fiquei observando outros colegas conversarem com alguns moradores de rua que ali moram. O movimento na rua era pequeno, pois já eram quase oito da noite. Mesmo assim, passavam algumas pessoas por nós, tentando esconder a curiosidade e o espanto sobre o que fazíamos. Lançavam olhares. Mas tenho quase certeza de que só olhavam porque estávamos ali, falando com eles. E somente por isso, naquele momento, aqueles moradores de rua foram vistos, saindo de sua constante invisibilidade.
Enquanto diversos moradores de rua passam de um lado para o outro, recolhendo papelões deixados pelas lojas nas calçadas, e ajeitando-os entre o chão e a parede do prédio comercial, converso com Eduardo. Estava falando com um morador de rua, Carlos, quando ele chamou Eduardo para conversar comigo, se ausentando. Começamos nosso diálogo, ou melhor, nosso monólogo, pois ele tinha muito a dizer, e eu, muito a escutar.
Parecia não querer parar de falar. Emendava um tema em outro, repetia os mesmos assuntos; eu tinha que estar atenta às pausas de sua respiração para conseguir formular-lhe algumas perguntas. Eduardo é de Caçador, está na rua há 15 anos, e hoje vive na companhia de quatro amigos: “somos andarilhos”, define o grupo.
Estudou até metade do ensino médio e hoje trabalha com pulseiras e chaveiros. “Pintura e letreiro. A única coisa que gosto de fazer é isso”, chega à conclusão. Seu orçamento é complementado por um dinheiro que recebe do governo, devido a um pino que possui na perna direita. Pergunto sobre como é morar nas ruas, já imaginando a resposta. Mas a verdade é que embora Eduardo me responda, e se todos os moradores de rua do mundo também o fizessem, creio que jamais saberia por completo. “É difícil. Para comer você tem que mendigar um prato de comida numa lanchonete. E todo mundo chama a gente de vadio, vagabundo. Roubar a gente não rouba. E quando a gente vai pedir um dinheiro, não dão (...). Pela educação que a gente tem, a gente já pediu ajuda da prefeitura, mas eles não dão. Eu trabalho, ganho meu sustento, faço brincos, chaveiros. Mas queríamos um apoio para sair dessa vida. De repente você passa calor, de repente frio, de repente pega chuva. Como mal. Essa vida é triste”.
Durante nossas quase duas horas de conversa, sobre o que mais Eduardo fala é de seu vício no álcool – e de sua vontade em vencê-lo. “Nunca fui ladrão. Não cheiro, não uso drogas. A única é a cachaça. Sou dependente do vício do álcool. Se eu parar direto, me dá uma convulsão”. Eduardo foi ao médico, para tratar seu vício. Quem pagou a consulta foi sua mulher, de 60 anos, que mora em Porto Alegre, com o filho deles, Lucas, de seis. Com a consulta médica, aprendeu que tem que parar aos poucos. “Se você toma um litro, tome meio e vai diminuindo. Quando você ver, você parou. Vai da consciência”, afirmou. Sua mulher, de Porto Alegre, veio lhe buscar, mas impôs-lhe uma condição: que abandonasse o álcool. “Eu vou fazer de tudo, eu vou deixar a cachaça. Nem que eu sofra, mas eu vou deixar. Eu amo ela”. Eduardo tira sua carteira do bolso e me mostra, quase que com devoção, uma foto três por quatro, preta e branca, de sua mulher. “Ela tem dinheiro, pagou uma consulta pra mim”. No dia seguinte ele teria uma consulta de dentista, paga também por ela, para consertar um dente semi quebrado.
A todo instante Eduardo volta a falar de seu vício. Nessas horas, olha fixamente para o horizonte e afirma que conseguirá deixar a bebida. “A partir de sábado não vou colocar mais um gole de álcool na boca. Eu vou vencer e vou ser feliz. É só eu querer. A sua cabeça é o seu mestre. Se você não tiver inteligência e humildade, você não consegue nada. Faz 12 anos que parei de fumar. Compro para eles, mas não fumo”. Eduardo tira uma carteira de cigarro do bolso, me mostra, e volta a guardá-la. Em outro momento de nossa conversa, um morador de rua veio lhe pedir cigarro. Ele, gentilmente, tirou um da carteira, e deu ao que pedia. Voltou a guardá-la.
Em dado momento da conversa, Eduardo me fala: “Queria ser rico, para ajudar todo mundo. Queria comprar um barracão para botar todo mundo. Mas cada um que se vire, trabalhe, procure sua comida. Nem o prefeito que é prefeito faz isso”. Confesso que antes de me encontrar com Eduardo, estava com receio de me deparar com a agressividade. Mas tudo o que encontrei foi confiança, educação e sinceridade. Ele me conta sobre o que costumam falar dele: “Eduardo, você dom pra ser um padre, um pastor. Não tem ninguém que fale mal de você, você ajuda todo mundo”. Ele olha para um morador de rua, que está bêbado, vestido com roupas velhas, deitado sobre um papelão, ao nosso lado, e desabafa: “Se não é eu cuidar dele, fazer ele tomar um remédio... pesa pra mim, porque é sempre nas minhas costas”.
Conta-me de uma conversa que teve com o Padre Pedro Keller:
- Eu tenho a certeza que um dia você vai estar no altar da minha Igreja.
- Hoje o senhor conversa com Ele. Quem sabe amanhã, eu converse com Ele.
Em determinado momento da conversa, uma moradora de rua, Geni, interrompe nossa conversa, com uma faca na mão, pedindo que Eduardo lhe ajude com algo. Ele me apresenta a mulher, ela me responde com um sorriso simpático e cansado. Pergunto se quer ir ajudá-la. Ele continua a conversa. Diz-me que tem data marcada para sair das ruas. Era terça-feira e, naquele domingo próximo, se mudaria para uma casa alugada, no Estreito. “Domingo vamos alugar uma casa. Vou sair dessa vida; só está dando desgraça pra gente. A prefeitura só quer colocar a gente debaixo do esgoto. Ganho um dinheiro porque tenho pino na perna, por isso tô alugando uma casa”. Sobre Geni, comenta com zelo: “Não vou deixar ela na mão Desculpe a palavra, mas ela não é vagabunda. É uma mulher digna, respeitada. Eu que tirei ela da droga (crack). E eu gosto dela. Eu vou tirar do meu bolso e pagar para ela a casa”.
Eduardo me olha fixamente e afirma gesticulando com as mãos: “Sou um ser humano, você é um ser humano, ela é um ser humano. A voz de você não é sua, é de Deus. Eu já vi nos teus olhos”. Me emociono, ele também. Retira de seu pulso uma pulseira de pedra, cinza escura, feita por ele, e coloca no meu. Pergunto qual seu maior sonho: “Deixar o meu vício e voltar pra minha mulher e meu filho”.
Na semana seguinte voltei ao mesmo local. Eduardo não estava mais lá. Fiquei observando outros colegas conversarem com alguns moradores de rua que ali moram. O movimento na rua era pequeno, pois já eram quase oito da noite. Mesmo assim, passavam algumas pessoas por nós, tentando esconder a curiosidade e o espanto sobre o que fazíamos. Lançavam olhares. Mas tenho quase certeza de que só olhavam porque estávamos ali, falando com eles. E somente por isso, naquele momento, aqueles moradores de rua foram vistos, saindo de sua constante invisibilidade.
Interligados
Por Mariana Hoffmann
De um lado ou de outro, tanto faz...
Apenas ando, pois nem mesmo sei por qual caminho andarei e nem se algum dia chegarei
Se nem mesmo eu chegar, feliz vou estar
Minha vida não tem certezas, mas qual vida tem ou terá?”
Conheci um jovem de 24 anos chamado Valdelírio. Sentados em um banco da Praça XV ele começou a contar toda a sua vida, por longas horas durante três dias a nossa conversa foi se estendendo e fui me envolvendo com suas histórias. Conheci os seus amigos Daniel, Andréia, Davi, Laurita e Jeferson, e aos poucos fui adentrando em suas vidas, mesmo que por alguns instantes.
Não tinha tempo feio que me fizesse sair dali; os assuntos eram envolventes e a vida daquele jovem e dos seus amigos era simplesmente uma incógnita resolvida, uma incerteza certa, um vazio cheio. O que seria o centro da cidade para nós, lugar de compras, correrias do dia-a-dia para eles é um “lar”, uma casa livre e aberta e ao mesmo tempo acolhedora e protetora. Os bancos que enxergamos como acentos são para eles uma cama, um escritório. Todas essas pessoas que conheci são moradores das ruas de Florianópolis, apesar de muitos virem de outros lugares.
Jeferson, um dos moradores da praça, contou que foi abandonado pela mãe na Praça XV, esperando um sorvete que nunca chegou. Já Daniel conta que faltava alimento para todos da família, então optou em sair para sobrar espaço e comida para os seus irmãos e pais.
Olhares perdidos e ao mesmo tempo desconfiados demonstram a insegurança e o medo deles diante de nós, imaginando se seríamos policiais ou jornalistas mal intencionados. Porém, mostram coragem e força em conviver diariamente com as dificuldades das ruas e mesmo assim conseguem manter o bom humor e seguir em frente. Muitos deles usam habitualmente drogas e vivem uma não lucidez contínua. Sua vida sexual é cercada de liberdade e descompromissos. Muitos deles são portadores de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Unidos como uma família eles protegem uns aos outros e se tratam com muito respeito e carinho. Também têm uma relação muito afetuosa com os animais: um cuida e protege o outro, e todos os cachorros têm nomes e são tratados com carinho e respeito.
Valdelírio me contou sobre o seu passado, a sua infância difícil. Aos oito anos saiu de casa para tentar a vida sozinho nas ruas, para deixar mais comida para os irmãos que passavam necessidade em casa. Contou que já fez de tudo, desde engraxar sapatos até prostituição. E com certo constrangimento me chamou em um canto e sussurrou baixinho, dizendo que já matou uma pessoa. Perguntei sobre essa experiência, e ele como em um ato de desabafo foi descrevendo o assassinato, detalhe por detalhe. Perguntei se sentia remorso e o motivo do assassinato e calmamente respondia que não, porque o Padre que matou mantinha relações sexuais com ele e outras pessoas, e na frente da sociedade era um padre respeitadíssimo.
No outro dia que em que eu me encontrei com o Valdelírio ele me confessou que sentiu remorso sim e não quis me dizer, mas que não pode fazer mais nada, só cumprir a sua pena. Ele comentou também as dificuldades de viver nas ruas, que incluem abrigo em dias de frio intenso, o preconceito das pessoas, a relação da polícia com eles, as possíveis brigas por território ou desavenças.
Além das dificuldades ele comentou também os pontos positivos da vida na rua, como por exemplo, a vida sem rotina, as viagens que pode fazer, as amizades, liberdade, e poder de decidir quando vai trabalhar e com o quê. Valdelírio comentou também sobre um livro que sonha em escrever, um livro sobre os prejuízos que as drogas causam na vida das pessoas. Nesse relato, quer utilizar as suas próprias experiências para alertar as pessoas que pensam ou vivem nessa rotina que já vivenciou.
Franzindo a testa e demonstrando constrangimento, fala que não deveria ter matado o Padre, e que vê muitas vezes a imagem dele nas paredes do quarto antes de dormir. Depois ele deixa escapar uma lágrima e pergunta se a vida dele tem solução, se ele não está condenado ao sofrimento por ter cometido esse erro. Com satisfação e alegria continuamos a conversa. Eu poderia ficar por longos anos conversando e aprendendo tudo que eles têm para nos ensinar, além de vivenciar, mesmo que na imaginação, tudo o que eles nos contam, e ao mesmo tempo distinguir a nossa realidade com a deles, que muitas vezes se chocam. Preocupado com o cheiro, ele pede para eu manter a distância e comenta que não toma banho faz alguns meses, eu disse que não me importava e cheguei mais próxima dele.
No meio da conversa apareceram no “escritório” da praça XV os amigos de Valdelírio. Toda vez que isso acontecia novas aventuras entravam em cena. Na maioria das vezes eu não estava sozinha, mas acompanhada de colegas presenciando aquela situação, aquele momento único, singular e inimaginável. Tudo acontecia inesperadamente, e assim sendo, os amigos de Valdelírio pediram para nós irmos até a delegacia que um dos seus amigos tinha sido preso e precisava telefonar para o seu tio que é advogado. No começo hesitamos e ficamos em silêncio por alguns segundos, até que um dos colegas, chamado Roger, levantou e chamou o grupo para agir e ir até lá. Fomos até a delegacia junto com o morador de rua Daniel.
Prestes a chegar escutamos um assobio, e logo em seguida Daniel assobiou também. Todos do grupo nesse instante se olharam, e apenas com o olhar pudemos entender o significado do assobio deles. Em seguida conversamos com o Jeferson que estava detido na delegacia do Centro, e quando chegamos ele estava ofegante, desconfiado, confuso e sem lucidez, tentando conversar com as pessoas do nosso grupo e o seu amigo Daniel. Falando apressadamente Daniel quase gritava para Jeferson que éramos jornalistas. Assim que Jeferson captou a mensagem do seu amigo começou a falar da polícia e pediu para anotarmos a placa da viatura que o levou, pois os PMs costumavam bater nos moradores de rua, segundo eles. Depois de toda essa confusão, conseguimos o telefone do advogado e passamos para os seus amigos na praça XV.
No penúltimo dia que estive na praça XV chovia muito e nem percebi o frio que fazia. Minha mente estava voltada somente para eles. Isso me fez pensar se estão sempre no centro da cidade, onde moram, e nós passamos também boa parte da nossa vida cruzando com eles, mesmo sem enxergá-los. De alguma forma fizemos parte da vida deles e eles da nossa. Estamos interligados com tudo que existe, mas ao mesmo tempo às vezes parecemos tão desligados.
Pude perceber que são tão parecidos conosco em todos os aspectos, a diferença é que buscam em caminhos diferentes objetivos parecidos com os nossos, como “felicidade, companheirismo, liberdade, alegria e um lar”, como descreve Valdelírio. Caminhos diferentes e ao mesmo tempo parecidos e entrecruzados.
Valdelírio disse que poderia muito bem ter feito uma faculdade, ter tido sucesso no trabalho, e essas coisas “que vocês vivem”, mas optou por ter liberdade, viver beirando a margem da sociedade, em busca de liberdade e conforto emocional em meio ao caos.
Prometi que mandaria para Valdelírio uma cópia das nossas conversas que eu gravei, ele pediu urgência, pois avisou que seria preso na semana seguinte pelo crime do Padre e que estava sendo ameaçado de morte, e se tivesse a fita poderia distribuir para que todos soubessem desse risco e talvez alguém fizesse algo para ajudá-lo. No fim das nossas conversas eu já estava fazendo parte da vida de Valdelírio, e ele da minha, assim como todas as pessoas do mundo fazem parte uma da vida das outras.
Somos todos interligados. Tudo é fruto de uma ligação e essa ligação é a fonte de vida universal. Ele escreveu em um pedaço de papel o seu telefone e me entregou com as mãos trêmulas e suando e com uma voz firme me pediu novamente: “Por favor mande essa fita para esse endereço; isso é importante, tem relação com a minha vida”. A partir daquele momento percebi a confiança mútua que desenvolvemos. Com um olhar de abandono ele acena. De longe vejo-o caminhar cabisbaixo e aparentemente triste.
Não tinha tempo feio que me fizesse sair dali; os assuntos eram envolventes e a vida daquele jovem e dos seus amigos era simplesmente uma incógnita resolvida, uma incerteza certa, um vazio cheio. O que seria o centro da cidade para nós, lugar de compras, correrias do dia-a-dia para eles é um “lar”, uma casa livre e aberta e ao mesmo tempo acolhedora e protetora. Os bancos que enxergamos como acentos são para eles uma cama, um escritório. Todas essas pessoas que conheci são moradores das ruas de Florianópolis, apesar de muitos virem de outros lugares.
Jeferson, um dos moradores da praça, contou que foi abandonado pela mãe na Praça XV, esperando um sorvete que nunca chegou. Já Daniel conta que faltava alimento para todos da família, então optou em sair para sobrar espaço e comida para os seus irmãos e pais.
Olhares perdidos e ao mesmo tempo desconfiados demonstram a insegurança e o medo deles diante de nós, imaginando se seríamos policiais ou jornalistas mal intencionados. Porém, mostram coragem e força em conviver diariamente com as dificuldades das ruas e mesmo assim conseguem manter o bom humor e seguir em frente. Muitos deles usam habitualmente drogas e vivem uma não lucidez contínua. Sua vida sexual é cercada de liberdade e descompromissos. Muitos deles são portadores de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Unidos como uma família eles protegem uns aos outros e se tratam com muito respeito e carinho. Também têm uma relação muito afetuosa com os animais: um cuida e protege o outro, e todos os cachorros têm nomes e são tratados com carinho e respeito.
Valdelírio me contou sobre o seu passado, a sua infância difícil. Aos oito anos saiu de casa para tentar a vida sozinho nas ruas, para deixar mais comida para os irmãos que passavam necessidade em casa. Contou que já fez de tudo, desde engraxar sapatos até prostituição. E com certo constrangimento me chamou em um canto e sussurrou baixinho, dizendo que já matou uma pessoa. Perguntei sobre essa experiência, e ele como em um ato de desabafo foi descrevendo o assassinato, detalhe por detalhe. Perguntei se sentia remorso e o motivo do assassinato e calmamente respondia que não, porque o Padre que matou mantinha relações sexuais com ele e outras pessoas, e na frente da sociedade era um padre respeitadíssimo.
No outro dia que em que eu me encontrei com o Valdelírio ele me confessou que sentiu remorso sim e não quis me dizer, mas que não pode fazer mais nada, só cumprir a sua pena. Ele comentou também as dificuldades de viver nas ruas, que incluem abrigo em dias de frio intenso, o preconceito das pessoas, a relação da polícia com eles, as possíveis brigas por território ou desavenças.
Além das dificuldades ele comentou também os pontos positivos da vida na rua, como por exemplo, a vida sem rotina, as viagens que pode fazer, as amizades, liberdade, e poder de decidir quando vai trabalhar e com o quê. Valdelírio comentou também sobre um livro que sonha em escrever, um livro sobre os prejuízos que as drogas causam na vida das pessoas. Nesse relato, quer utilizar as suas próprias experiências para alertar as pessoas que pensam ou vivem nessa rotina que já vivenciou.
Franzindo a testa e demonstrando constrangimento, fala que não deveria ter matado o Padre, e que vê muitas vezes a imagem dele nas paredes do quarto antes de dormir. Depois ele deixa escapar uma lágrima e pergunta se a vida dele tem solução, se ele não está condenado ao sofrimento por ter cometido esse erro. Com satisfação e alegria continuamos a conversa. Eu poderia ficar por longos anos conversando e aprendendo tudo que eles têm para nos ensinar, além de vivenciar, mesmo que na imaginação, tudo o que eles nos contam, e ao mesmo tempo distinguir a nossa realidade com a deles, que muitas vezes se chocam. Preocupado com o cheiro, ele pede para eu manter a distância e comenta que não toma banho faz alguns meses, eu disse que não me importava e cheguei mais próxima dele.
No meio da conversa apareceram no “escritório” da praça XV os amigos de Valdelírio. Toda vez que isso acontecia novas aventuras entravam em cena. Na maioria das vezes eu não estava sozinha, mas acompanhada de colegas presenciando aquela situação, aquele momento único, singular e inimaginável. Tudo acontecia inesperadamente, e assim sendo, os amigos de Valdelírio pediram para nós irmos até a delegacia que um dos seus amigos tinha sido preso e precisava telefonar para o seu tio que é advogado. No começo hesitamos e ficamos em silêncio por alguns segundos, até que um dos colegas, chamado Roger, levantou e chamou o grupo para agir e ir até lá. Fomos até a delegacia junto com o morador de rua Daniel.
Prestes a chegar escutamos um assobio, e logo em seguida Daniel assobiou também. Todos do grupo nesse instante se olharam, e apenas com o olhar pudemos entender o significado do assobio deles. Em seguida conversamos com o Jeferson que estava detido na delegacia do Centro, e quando chegamos ele estava ofegante, desconfiado, confuso e sem lucidez, tentando conversar com as pessoas do nosso grupo e o seu amigo Daniel. Falando apressadamente Daniel quase gritava para Jeferson que éramos jornalistas. Assim que Jeferson captou a mensagem do seu amigo começou a falar da polícia e pediu para anotarmos a placa da viatura que o levou, pois os PMs costumavam bater nos moradores de rua, segundo eles. Depois de toda essa confusão, conseguimos o telefone do advogado e passamos para os seus amigos na praça XV.
No penúltimo dia que estive na praça XV chovia muito e nem percebi o frio que fazia. Minha mente estava voltada somente para eles. Isso me fez pensar se estão sempre no centro da cidade, onde moram, e nós passamos também boa parte da nossa vida cruzando com eles, mesmo sem enxergá-los. De alguma forma fizemos parte da vida deles e eles da nossa. Estamos interligados com tudo que existe, mas ao mesmo tempo às vezes parecemos tão desligados.
Pude perceber que são tão parecidos conosco em todos os aspectos, a diferença é que buscam em caminhos diferentes objetivos parecidos com os nossos, como “felicidade, companheirismo, liberdade, alegria e um lar”, como descreve Valdelírio. Caminhos diferentes e ao mesmo tempo parecidos e entrecruzados.
Valdelírio disse que poderia muito bem ter feito uma faculdade, ter tido sucesso no trabalho, e essas coisas “que vocês vivem”, mas optou por ter liberdade, viver beirando a margem da sociedade, em busca de liberdade e conforto emocional em meio ao caos.
Prometi que mandaria para Valdelírio uma cópia das nossas conversas que eu gravei, ele pediu urgência, pois avisou que seria preso na semana seguinte pelo crime do Padre e que estava sendo ameaçado de morte, e se tivesse a fita poderia distribuir para que todos soubessem desse risco e talvez alguém fizesse algo para ajudá-lo. No fim das nossas conversas eu já estava fazendo parte da vida de Valdelírio, e ele da minha, assim como todas as pessoas do mundo fazem parte uma da vida das outras.
Somos todos interligados. Tudo é fruto de uma ligação e essa ligação é a fonte de vida universal. Ele escreveu em um pedaço de papel o seu telefone e me entregou com as mãos trêmulas e suando e com uma voz firme me pediu novamente: “Por favor mande essa fita para esse endereço; isso é importante, tem relação com a minha vida”. A partir daquele momento percebi a confiança mútua que desenvolvemos. Com um olhar de abandono ele acena. De longe vejo-o caminhar cabisbaixo e aparentemente triste.
A realidade das ruas
por Vanessa Bastos
Quem passa pela Praça XV talvez nem note – ou não queira notar, que o lugar se tornou a casa para pessoas que não têm onde morar. Mas isso só acontece com quem ignora a realidade em que vivemos em Florianópolis e até mesmo no Brasil. Mas fiquemos somente com os moradores de rua da capital catarinense que, por si só, já podem dar uma lição de desapego ao preconceito, se nos permitimos a isso.
Se alguém se dispuser a ir até a Praça XV, poderá conversar com pessoas como David, Daniel, Déia, Jeferson, Valdelírio, dona Lorita e muitos outros que passam a fazer parte dessa família, como eles se definem. Eu, particularmente, tive o prazer de conhecê-los, aprender com eles coisas que talvez eu nunca aprenda em outro lugar e que com toda a certeza serão úteis ao longo da vida que me espera. Sabe aqueles ditados populares: “A primeira impressão é a que fica” e “Quem vê cara não vê coração”? Então, são apenas frases que alguém inventou para qualquer outra coisa, menos para exemplificar a realidade dos moradores de rua da Praça XV. Pois o conhecimento que cada um carrega dentro de si, não está estampado no rosto, nas roupas, onde vive ou em qualquer outro lugar. Ele está sim, em nosso coração.
E se o ser humano estiver em busca de valores, seja de qual gênero forem, familiares, pessoais etc., há uma receita – receita, não que isso é muito mais que um bolo, é uma lição, infalível. Tente parar um dia, desprendido de todo valor material e qualquer outro que possa lhe fazer “mal” durante essa experiência. Feito isso, vá até essas pessoas e dedique parte do seu tempo a conversar com elas, trocar vivências e o mais importante, antes mesmo de entrar nesse encontro, esteja aberto para sair dele transformado.
Ah, claro, não pense que possa comprá-los com comida ou outras necessidades. Eles carecem dessas coisas sim, mas sua dignidade é algo que não se compra. E uma boa conversa, sem intenção de prejudicar às vezes vale muito mais do que algum bem. Pois não só alimenta a cabeça, aquece a alma, como os faz ver – por mais que já tenham consciência disso, que são gente, simplesmente gente.
Não é porque moram na Praça XV que não têm direitos e deveres. Eles os têm e sabem muito bem quais são. Até porque, para viverem como vivem têm que saber seus direitos e deveres na ponta da língua. Principalmente quando acontece algo relacionado à polícia. A família da XV é muito unida e entre eles, um está para o que o outro precisar, como para se defenderem, por exemplo. Como eles dizem, são muito mais próximos do que com alguns parentes de sangue. Três deles, por exemplo, para mostrar essa “irmandade” têm o símbolo da XV tatuados.
Enfim, todos deveriam passar por essa experiência maravilhosa que me foi proporcionada. Porque saio dali não só com informações para utilizar em prol da minha profissão, mas com um gigantesco aumento na minha bagagem pessoal de mão. Respeito é bom e todo mundo gosta, independentemente da condição em que se encontra.
Se alguém se dispuser a ir até a Praça XV, poderá conversar com pessoas como David, Daniel, Déia, Jeferson, Valdelírio, dona Lorita e muitos outros que passam a fazer parte dessa família, como eles se definem. Eu, particularmente, tive o prazer de conhecê-los, aprender com eles coisas que talvez eu nunca aprenda em outro lugar e que com toda a certeza serão úteis ao longo da vida que me espera. Sabe aqueles ditados populares: “A primeira impressão é a que fica” e “Quem vê cara não vê coração”? Então, são apenas frases que alguém inventou para qualquer outra coisa, menos para exemplificar a realidade dos moradores de rua da Praça XV. Pois o conhecimento que cada um carrega dentro de si, não está estampado no rosto, nas roupas, onde vive ou em qualquer outro lugar. Ele está sim, em nosso coração.
E se o ser humano estiver em busca de valores, seja de qual gênero forem, familiares, pessoais etc., há uma receita – receita, não que isso é muito mais que um bolo, é uma lição, infalível. Tente parar um dia, desprendido de todo valor material e qualquer outro que possa lhe fazer “mal” durante essa experiência. Feito isso, vá até essas pessoas e dedique parte do seu tempo a conversar com elas, trocar vivências e o mais importante, antes mesmo de entrar nesse encontro, esteja aberto para sair dele transformado.
Ah, claro, não pense que possa comprá-los com comida ou outras necessidades. Eles carecem dessas coisas sim, mas sua dignidade é algo que não se compra. E uma boa conversa, sem intenção de prejudicar às vezes vale muito mais do que algum bem. Pois não só alimenta a cabeça, aquece a alma, como os faz ver – por mais que já tenham consciência disso, que são gente, simplesmente gente.
Não é porque moram na Praça XV que não têm direitos e deveres. Eles os têm e sabem muito bem quais são. Até porque, para viverem como vivem têm que saber seus direitos e deveres na ponta da língua. Principalmente quando acontece algo relacionado à polícia. A família da XV é muito unida e entre eles, um está para o que o outro precisar, como para se defenderem, por exemplo. Como eles dizem, são muito mais próximos do que com alguns parentes de sangue. Três deles, por exemplo, para mostrar essa “irmandade” têm o símbolo da XV tatuados.
Enfim, todos deveriam passar por essa experiência maravilhosa que me foi proporcionada. Porque saio dali não só com informações para utilizar em prol da minha profissão, mas com um gigantesco aumento na minha bagagem pessoal de mão. Respeito é bom e todo mundo gosta, independentemente da condição em que se encontra.
Relato de um ser que vaga pelas ruas
por Jenniffer Viana
Marcada pelo sofrimento e pela vulnerabilidade física constante, a vida dos moradores de rua se faz uma luta diária em busca da sobrevivência e da resistência
Era tarde de terça-feira. A idéia de experimentar, por algumas horas, a vida dos moradores de rua de Florianópolis me animou no início. Os dias passaram e o frio na barriga aumentou, pensei que não seria tão fácil uma aproximação. O que eles devem pensar de nós que vamos até eles simplesmente para vasculhar suas vidas?
Enfim chegou o dia! Eu acordei nervosa, não sei o que encontraria pela frente. As horas passaram e enfim, me vi no centro de Florianópolis pronta para dialogar com os moradores de rua.
No começo pensei que iria encontrar pessoas infelizes com a vida que levam. No entanto, muitas se sentem felizes por viverem livre longe da vida regrada que nós, os com teto, levamos.
Era fim de tarde, aos poucos se percebe que realmente morre uma Florianópolis agitada, perturbada enquanto nasce uma cidade lúdica cheia de pessoas que andam pela cidade com histórias marcantes para contar.
Aos poucos me aproximo, junto com minhas colegas de classe, de um pequeno grupo de moradores de rua que estava no Coreto do Largo da Alfândega. Estavam jogando conversa fora, rindo de si mesmos e tomando “água que passarinho não bebe”, é assim que eles intitulam a tão famosa cachaça.
Sentado em um canto um homem que usava boné, camiseta larga, algumas bijuterias e um fone de ouvido, me chamou atenção pelo modo como se comportava diante dos outros. Foi logo perguntando o que queríamos. Aos poucos o diálogo que intitulo de desconfiado foi sendo entabulado. O pseudônimo dele é Curitiba, isso porque vem da capital do estado do Paraná mesmo. Tem 42 anos e vive em Florianópolis há 10. Um homem aparentemente comum, sua aparência não amedrontava, mas suas palavras aterrorizavam.
Curitiba diz ser um homem culto que fala espanhol. Morou na Argentina por três anos, passou pelo Uruguai além de Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Diz ser o dono do bairro de Canasvieiras na capital, as pessoas para permanecer no lugar têm que lhe pedir permissão. Pergunto no que trabalha e não me responde. Mas aos poucos, em suas próprias palavras, está implícito qual era seu ofício. Pergunto a ele por que veio a Florianópolis. Nesse momento me disse que saiu de Curitiba porque lá está morto, assim como no Rio Grande do Sul. ‘Curitiba’ tem dois atestados de óbito. Usando suas próprias palavras, repito. “A vida me levou a esse caminho”.
Enquanto a entrevista/bate–papo acontece a cidade escurece, algumas pessoas se aglomeram nos arredores, e o nervosismo aumenta a cada minuto que passa. Já estou dispersa do que ‘Curitiba’ fala, estou mais atenta na movimentação que acontece ao redor. Uma coisa em especial chamou atenção. ‘Curitiba’ mostra as diferenças de quem escolhe as ruas para morar. Existem três tipos de moradores de ruas, os malandros, os marginais e os bandidos. Ele se classifica como malandro porque diz fazer apenas sua parte, e não faz mal à sociedade. Suas palavras são controversas afinal ‘Curitiba’ já matou, roubou, e já foi preso. “Eu não fico por muito tempo, fantasma não fica preso, esqueceu que eu tô morto.”
Apesar de tudo que escuto, do relato da vida de um homem com uma história tão marcante, há uma justificativa. As pessoas são o que são em vista da vida que levam ou que levaram. Curitiba não conheceu o pai, tem uma relação conflitante com sua mãe, sua esposa está presa por latrocínio - roubo seguido de morte – sua filha mais nova, com apenas seis meses, está em posse da Justiça, tem um filho morando com sua mãe no qual não mantém contato, e dois filhos no Rio Grande do Sul que ele nem sabe se estão vivos.
Essa história cheia de conflitos e episódios trágicos marcou muito. O mundo que está escondido dos nossos olhares nas ruas de Florianópolis é muito distinto do que imaginamos, mas a condição de habitante das ruas oferece a possibilidade de um olhar único, crítico e pensante sobre o cotidiano.
Fonte: Diario Catarinense
Enfim chegou o dia! Eu acordei nervosa, não sei o que encontraria pela frente. As horas passaram e enfim, me vi no centro de Florianópolis pronta para dialogar com os moradores de rua.
No começo pensei que iria encontrar pessoas infelizes com a vida que levam. No entanto, muitas se sentem felizes por viverem livre longe da vida regrada que nós, os com teto, levamos.
Era fim de tarde, aos poucos se percebe que realmente morre uma Florianópolis agitada, perturbada enquanto nasce uma cidade lúdica cheia de pessoas que andam pela cidade com histórias marcantes para contar.
Aos poucos me aproximo, junto com minhas colegas de classe, de um pequeno grupo de moradores de rua que estava no Coreto do Largo da Alfândega. Estavam jogando conversa fora, rindo de si mesmos e tomando “água que passarinho não bebe”, é assim que eles intitulam a tão famosa cachaça.
Sentado em um canto um homem que usava boné, camiseta larga, algumas bijuterias e um fone de ouvido, me chamou atenção pelo modo como se comportava diante dos outros. Foi logo perguntando o que queríamos. Aos poucos o diálogo que intitulo de desconfiado foi sendo entabulado. O pseudônimo dele é Curitiba, isso porque vem da capital do estado do Paraná mesmo. Tem 42 anos e vive em Florianópolis há 10. Um homem aparentemente comum, sua aparência não amedrontava, mas suas palavras aterrorizavam.
Curitiba diz ser um homem culto que fala espanhol. Morou na Argentina por três anos, passou pelo Uruguai além de Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Diz ser o dono do bairro de Canasvieiras na capital, as pessoas para permanecer no lugar têm que lhe pedir permissão. Pergunto no que trabalha e não me responde. Mas aos poucos, em suas próprias palavras, está implícito qual era seu ofício. Pergunto a ele por que veio a Florianópolis. Nesse momento me disse que saiu de Curitiba porque lá está morto, assim como no Rio Grande do Sul. ‘Curitiba’ tem dois atestados de óbito. Usando suas próprias palavras, repito. “A vida me levou a esse caminho”.
Enquanto a entrevista/bate–papo acontece a cidade escurece, algumas pessoas se aglomeram nos arredores, e o nervosismo aumenta a cada minuto que passa. Já estou dispersa do que ‘Curitiba’ fala, estou mais atenta na movimentação que acontece ao redor. Uma coisa em especial chamou atenção. ‘Curitiba’ mostra as diferenças de quem escolhe as ruas para morar. Existem três tipos de moradores de ruas, os malandros, os marginais e os bandidos. Ele se classifica como malandro porque diz fazer apenas sua parte, e não faz mal à sociedade. Suas palavras são controversas afinal ‘Curitiba’ já matou, roubou, e já foi preso. “Eu não fico por muito tempo, fantasma não fica preso, esqueceu que eu tô morto.”
Apesar de tudo que escuto, do relato da vida de um homem com uma história tão marcante, há uma justificativa. As pessoas são o que são em vista da vida que levam ou que levaram. Curitiba não conheceu o pai, tem uma relação conflitante com sua mãe, sua esposa está presa por latrocínio - roubo seguido de morte – sua filha mais nova, com apenas seis meses, está em posse da Justiça, tem um filho morando com sua mãe no qual não mantém contato, e dois filhos no Rio Grande do Sul que ele nem sabe se estão vivos.
Essa história cheia de conflitos e episódios trágicos marcou muito. O mundo que está escondido dos nossos olhares nas ruas de Florianópolis é muito distinto do que imaginamos, mas a condição de habitante das ruas oferece a possibilidade de um olhar único, crítico e pensante sobre o cotidiano.
“Florianópolis e Joinville estão entre as cidades do país como maior número de pessoas em situação de rua, em relação à população total. A pesquisa inédita é do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), em parceria com a Unesco. No levantamento, Florianópolis foi a 7ª e Joinville a 20ª. O levantamento avaliou 71 cidades brasileiras e municípios com população superior a 300 mil habitantes, em outubro de 2007.”
Fonte: Diario Catarinense
Três Impressões de Ruas Frias
por Thomaz L. Alves
I
Praça XV.
O desenho do piso parecia uma multidão.
O desenho do piso mudava seu padrão conforma caminhava-se sobre ele.
O desenho do piso era mutante.
Sobre ele, havia árvores. Enormes, pesadas, antigas.
Elas faziam o ar circular, tornando o vento fresco em noite de primavera.
Também havia outras coisas na praça.
Bancos, namorados, pombos. Cheiro de cachorro molhado e mijo.
Um amontoado de pedras, bancos e plantas. Como um anfiteatro ao ar livre.
Ali, sentados com a maior naturalidade do mundo, estavam quatro deles. Os amigos da Praça XV.
Moradores de rua. Sem teto. Mendigos. Vagabundos.
Pessoas.
Todos os quatro, cada qual por seu próprio motivo, moram na rua.
Pessoas que mudaram. Transubstanciou sua vida para algo mais duro.
Viviam uma nova vida agora. Uma vida sobre os desenhos do piso da Praça XV.
Eles, assim como os padrões do piso sobre o qual dormiam, eram mutantes.
A vida imita os padrões.
Tinham um padrão marcado nos corpos.
Era um símbolo. O símbolo da união familiar.
Todos cuidavam de todos.
Uma família que levava o nome de onde viviam tatuado no braço.
Praça XV.
II
Dos quatro que moravam sobre aquele teto feito de estrelas e copas de árvores, a que mais se destacava era Andréia.
Isso se devia ao seu porte físico. Diferente dos demais.
Era frágil.
Corpo extremamente magro, escondido sob roupas pretas e brancas. Cabelos desgrenhados.
Andréia portava em sua boca uma máscara branca. Cirúrgica.
A mulher sofria de Tuberculose. Tinha AIDS também.
Mas gostava de comer cachorro quente.
Falava em corrupção.
Saia pelas ruas para corromper as pessoas.
Era o que ela dizia.
Gíria. Era isso.
Corromper as pessoas, ou seja, pedir dinheiro.
Não necessariamente para comer. Por isso corrompia.
Era para drogas.
O Crack.
Uma pedra por dia.
Sofria uma morte por dia.
Em seu colo, trazia um cão. Era seu “neném”.
Chamava-se coisinha.
O segundo dos quatro era Daniel.
Grande. Camiseta regata. Boné na cabeça.
Era cardíaco. Levava as marcas de cirurgia estampadas em seu peito.
Desconfiava de todos. Todos eram “P2”
Polícia Civil.
Deve ter tido muitos problemas com ela.
Nunca falava dela.
Também nunca falava de si mesmo.
Isso entrava no psicológico. Não era bom.
É o que dizia, enquanto olhava para o céu.
Não sei como o acaso o trouxe as ruas.
Ele era um homem acostumado a manter os pés firmes em sua Terra.
Sua casa.
Á rua nunca havia exercido nenhum fascínio sobre sua pessoa.
Na verdade, o que o encantava de fato era o céu. Mais especificamente, a Lua, que não deixa de ser outra Terra.
Outra casa.
Alguém lhe disse que é sempre noite na Lua.
Lançou-se a rua.
O Terceiro a se notar era David.
David.
Da língua inglesa.
Variante de Davi.
Não se pronuncia davídi. Nem deividi
É Davi.
Foi assim que ele se apresentou.
Davi.
Morador de rua. Sem teto. Mendigo. Vagabundo.
Pode usar a expressão que desejar.
Ele mora na rua. É fato. Ele não nega.
Davi não nega.
Na verdade o nome não vem da língua inglesa. A origem é Hebraica.
O amado.
É o que significa.
Significa outras coisas também.
Segundo o Dicionário de Nome e Símbolos Chevalier:
“Muito atencioso, e apegado à família, possui um senso protetor muito forte. É o tipo de pessoa que gosta de se sentir útil e necessário. Chega a assumir mais responsabilidades do que realmente pode suportar. Não costuma voltar atrás em suas palavras. Muito ocupado, raramente se permite algumas horas livres para o lazer. Mas deve tomar cuidado em não se tornar dependente ou infantil ao extremo.”
Chevalier tinha razão.
Assim era David. Ao menos, foi a impressão que passou.
Era o líder nato dentre os quatro.
Na realidade. Cuidava de orientar a todos ali.
Cuidava de Andréia, a quem chamava de fininho. Era sua mulher.
Também usava drogas.
Esse foi o motivo de ir para as ruas.
David era formado em veterinária.
Era o que ele contava.
Teve uma época em que foi um sujeito muito violento.
Não era mais. Mudou.
A rua o deixou mais sereno.
Mas das crises de abstinência não se livrava.
Seus dias são batalhas travadas com uma parte de si mesmo.
Sua tentativa de tentar controlar e minimizar o efeito da droga sobre si mesmo.
Mas nem sempre funcionava.
Sempre chega como um flash.
Inesperadamente. Apenas mais obscuro, abstrato.
Tremedeiras rápidas, intensas.
As mãos tremem.
Tudo se mistura e tudo se confunde.
Colapsos.
Somente a droga cura.
David só tem 36 anos.
Por ultimo, o quarto integrante da família.
Dona Loreta. 56 anos.
Foi o que David disse.
Ele era seu filho.
Loreta dizia que a idade não importava. A cabeça sim. O bom coração também.
Ela não gostava de dizer a idade. Parecia ter bem mais idade do que realmente tinha.
Não gostava de outras coisas além da idade.
De fotos, por exemplo. Nem de falar.
Um pouco de timidez natural. Um pouco de vergonha por sua situação.
Ela também não se importava muito consigo mesma. O coração era maior.
Suas roupas eram sujas e manchadas. Cheiravam a fezes.
Mas gostava de cachorro quente. Igual a Andréia.
Para elas, cachorro quente tinha gosto de quero mais.
Dona Loreta tinha uma história peculiar.
Possuía sua própria casinha em Curitibanos.
Interior do estado de Santa Catarina.
Era longe.
Seu marido era agricultor.
Ela também deveria ser. Não confirmava isso.
Largou tudo e foi atrás do filho quando este rumou para a rua.
Fugiu para a rua, melhor dizendo.
Agora ali está.
Reclama que o filho não se importou com a família de sangue quando foi para a rua.
Reclama que ele se importa com a mulher.
Andréia.
Reclama que ele se importa com o amigo.
Daniel.
Mas não se importa com ela. Com a idade dela.
Não se importa com o seu amor de mãe.
Sua única saída é a fé.
É a crença.
A crença em dias melhores. A crença em salvar seu filho.
David.
O Amado.
III
A estrada.
A estrada é o caminho onde só as hienas se arrastam entre cinzas e poeiras.
A estrada é o caminho percorrido para se chegar até a realidade.
A realidade são as ruas.
Quando se caminha pelas ruas, não há hienas.
Existem os perdidos.
Aqueles que mesmo cercados pela multidão estão invisíveis.
Percorrem as ruas da cidade como se fossem estradas desertas. Aqueles que farejam com seus focinhos entre a poeira e a desolação.
Os miseráveis parecem estar em outro tempo, vivendo uma espécie de calamidade pós-apocalíptica.
Imagino que esses homens, mulheres e hienas vivem no futuro e é para lá que vão todos os que percorrem as ruas.
Ao menos, neste futuro, existem as famílias.
Para cuidar.
Existe o amado.
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