terça-feira, 7 de junho de 2011

As cinco sensações de Rita

Conhecendo por onde as histórias passam

I

Dá-se um passo.
Dentro do terminal.
Terminal rodoviário.
Pessoas andam.
Para todos os lados.
Vindos de todos os lados.
É o Terminal Rodoviário de Florianópolis.
Rita Maria é o seu nome.
Na avenida Paulo Fontes, no Centro de Florianópolis.
O Terminal ganhou este nome em homenagem a uma senhora.
Moradora das imediações.
Dizem que a velha senhora recebia anteriormente os visitantes que ali chegavam.
Por isso o nome.
A referência.
Olha-se ao redor.
Olha-se o espaço.
O espaço da edificação é constituído por um grande elemento horizontal.
Quase monótono.
Tipo galpão.
Alguns mezaninos com estrutura independente ao longo de seu eu.
Para quebrar a horizontalidade do conjunto dispõem-se oito torres de serviço. Elas avançam para além da cobertura.
Antes de entrar, o piso é de pedra.
É a calçada.
Além da calçada, se encontra o piso emborrachado da rodoviária.
Ao atravessar a primeira porta da rodoviária, percebe-se com o olho a mudança de piso.
O piso é emborrachado.
Segue-se em frente.
Área de desembarque.
Da porta de entrada até o desembarque contam-se sessenta metros.
Ali está, erguida de maneira discreta, mas convicta, a sala de segurança.
Feita de plástico.
Também vidro.
Dentro, um homem observa tudo.
Impassível.
Rádio preso à cintura.
Jaqueta azul escura.
Rosto massacrado pelo tempo.
Pela sinceridade do tempo.
Mirando à direita da sala de segurança, pode-se ver parte do caminho.
O caminho percorrido por aqueles que chegam.
Chegam de ônibus.
E por aqueles que se vão.
Também nos ônibus.
Seguindo este caminhar ao longo da rodoviária, percorre-se 200 metros de extensão.
A esquerda desta rota, lojas.
Duas lanchonetes.
Ali próximo dois pipoqueiros.
Roupas brancas.
Carrinhos coloridos.
Listrados.
Vermelho.
Branco.
Alternados.
À direita do pipoqueiro, a escada que leva ao piso superior.
Mais à frente todos os balcões e guichês de empresas rodoviárias.
Caminhando por esta extensão esbarra-se em colunas maciças de concretos.
Elas ficam enfileiradas no centro do caminho percorrido.
As colunas de sustentação na passagem dos que viajam.
Seguindo para além dos pipoqueiros, veem-se os balcões de compra de passagens.
Depois, os portões de embarque.
Portão A.
Portão B.
Portão C.
Portão D.
D.
Do dia a dia de pessoas que fazem do terminal, seu caminho.
Sua passagem.

II

Parado em meio ao Rita Maria, cheira-se.
Bombardeio de odores.
Sabores imaginários.
Olfato.
O olfato é o instrumento do corpo humano para criar associações.
Trazer à tona as memórias mais fortes.
As sensações mais doces.
Parado em meio ao terminal, cheira-se.
Almíscar fecal.
Mistura de cimento.
Pedra chanfrada.
Borracha suada.
Suor de pessoas.
Odor natural de mais de uma centena de caminhantes.
Visitantes.
Diários.
Os cheiros são diários.
Mas, se percorrer o amplo salão central.
Ziguezaguear as colunas.
Cheira-se.
Vinho.
Conhaque.
Tabaco.
Cigarro.
Revista nova no plástico.
Bala de morango.
Trazido pela brisa noturna das portas que se abrem, pipoca.
Odor irresistível.
Na verdade, milho e sal.
Milho.
Muito sal.
O pipoqueiro, moço, muito simpático para as jovens senhoritas de nariz fino e cabelos encaracolados, preenche de sal, seu produto.
“O segredo está no sal!”
É o que ele diz.
Enquanto fala, faz seu rito frequente.
Pega a pequena pá de metal.
Mergulha no milho quente e estourado.
E no sal, logicamente.
Despeja no pacote listrado de papel.
Serve ao cliente.
E conversa.
Ou fala.
Depende de quem ouve.
O pipoqueiro, que vaporiza nas narinas um repelente contra mal cheiro, nem sempre foi pipoqueiro.
Antes, foi sonhador.
Sonhou com um mundo mágico.
De cheiros mágicos.
Mas a magia morreu quando algo fantástico nasceu.
Seu filho.
O fez acordar para o deserto do real.
O Terminal foi sua solução.
A pipoca, que é o sustento para aqueles que existem na passagem, tornou-se o sustento daquele que a distribui.
O segredo é o sal.
Salgada.
Sua vida.

III

Come a pipoca.
Muito salgada.
Mas a pipoca, não é o único sabor.
Tem a sopa.
Na loja de sopas.
Mini-restaurante.
Corrijo.
Ela é molhadinha.
Água temperada.
Pequenos grãos.
Bem quentinha.
Mas a sopa é só sombra.
Ela se foi.
A sopa.
Não existe mais nada de sopa.
É à sombra de tempos diferentes do Terminal.
Em mais de 20 anos, Rita Maria mudou.
Como tudo que é vivo.
Mudou.
Como as pessoas que transitam ali.
Mas o sabor dali é mais do que sopa ou pipoca.
É sabor humano.
De cada história.
De cada pessoa que transitou por aquele espaço através de tanto tempo.

IV

As pessoas falam.
Muito.
Conversas íntimas entre jovens casais e namorados.
Diálogos entre velhos senhores.
Um violão tocado por um homem sentado ao chão.
No Terminal Rodoviário ouve-se de tudo.
Som.
Sons.
Música improvisada.
Os seguranças que falam pelos rádios.
Motores que roncam.
Rosnam.
Os passos furiosos dos viajantes.
Cada conversa.
Barulho de motor.
Ruído de rádio.
Barulho de descarga.
Funcionam como uma fala.
Grito.
Que o terminal oferece à cidade.
Grito sincero de vida.
De ouça-me.
Ouça meus problemas.
Minhas dores.
Mas a cidade não ouve.
Como os homens e mulheres que ali passam.
Ou que ali vivem.
Ninguém os ouve.
A cidade não os ouve.
O grito se torna lágrima.
A lágrima se torna a batida de um coração.
Coração mal cuidado.

V

O coração mal cuidado também ama.
Ama como todos os homens e mulheres.
Amam de corpo.
De alma.
De DETER.
DETER é a equipe designada para fazer a segurança de Rita Maria.
DETER é uma palavra sem sentido para quem se depara com ela.
Significa pessoas de jaquetas azuis escuras com um rádio preso à cintura.
Significa pessoas de rosto cansado com o dever de resguardar a ordem do local.
A palavra que oferece uma identidade aos que, aparentemente, não tem identidade.
E, na sala de segurança, erguida de maneira discreta, mas convicta um homem observa a tudo.
Impassível.
Rádio preso à cintura.
Jaqueta azul escura.
Rosto massacrado pelo tempo.
Pela sinceridade do tempo.
Chefe do turno da noite.
Wilson.
É o seu nome.
Não confundir com a bola.
Wilson.
Lê-se “Vilsom”
Ele, senhor de muita idade no rosto.
Tornou-se membro do DETER por amor.
Amor à família.
Ao filho recém-nascido.
Também por necessidade.
De sustento.
Como o pipoqueiro.
“Vilsom” ou “ Wilson” trabalha no Terminal por quase 20 anos.
Tocou muita coisa.
Corpos em desavenças corporais com senhoras de meia idade.
Tocou almas, com os esquecidos por todos, mas lembrado por ele.
Histórias de vidas.
De amores.
Amores que, como a sopa que se foi, o sal amargo da pipoca, se transforma ou transforma aqueles em que toca.
O amor instintivo que brota dos lugares escondidos.
Os cantos sombrios cercados por grades baixas.
Lugares fora da visão.
Que também brota dos cantos iluminados.
Seguros.
Dos banheiros.
E nestes banheiros nasce a revolta do amor.
Ou o amor revoltado.
E o Wilson ao adentrar o banheiro, certa vez, há muito tempo, ele diz, deparou-se com essa revolta.
Revolta de homens.
Homens que se beijam.
Amam.
Um ao outro.
Algo além do simples toque Wisoniano.
Do Wilson.
Ele, que tem o filho homem em idade adolescente.
Que sai.
Vive.
Curte.
Poderia estar ai.
Amando.
Participando da revolta dos homens.
Do amor.
Ou do amor revoltado.
De Wilson que, pela primeira vez, apalpou uma possibilidade.
A possibilidade de o amor brotar por entre o concreto e o piso emborrachado.
Os sons mistos e os cheiros irresistíveis.
Do sabor humano.
O amor que é o tato.
Humano.

VI

Por todo o lado, pessoas caminham.
Caminham vindas dos ônibus.
Caminham rumo aos taxis parados de fronte as postas do local.
Andam para dentro do terminal, decorrendo de fora.
Do centro da cidade.
Caminham, pois este é um local que existe no meio.
Não no meio da cidade.
Mas no meio da vida.
O terminal é vivo.
Embora construção de pedra e vidro, é também construído de pessoas.
Constituído, melhor afirmando.
Sua constituição brota da polpa frondosa das histórias de cada um que transita ou transitou pelo terminal.
É o inicio e o fim de cada historia.
Saga.
Épico.
Epopéia.
Vida.
Vivência passageira.
Dos passageiros.
Do Terminal.
Rita Maria.
Recepciona cada pessoa que em Florianópolis chega.
Vivência passageira.
Daqueles que vivem ali.
Trabalham ali.
Amam ali.
As histórias que Florianópolis esquece.

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Thomaz Alves, o autor deste texto, é estudante de jornalismo pela UNISUL, desempregado e desenha com nanquim nas horas vagas.

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