terça-feira, 7 de junho de 2011

A Gigante Cinza

Histórias e personagens durante um cochilo esquecido na grande e acolhedora Rodoviária Rita Maria, em Florianópolis

Em maio, Florianópolis despede-se do agito encalorado do verão e se veste com temperaturas mais amenas, dando bom dia à cores e luzes inacreditáveis, e cumprimentando o maravilhoso outono ilhéu. Nessa época a capital do Sol e das praias é surpreendida com frequência por nuvens choronas que teimam em acompanhar os pingos de noite que caem no céu. Esse casamento escuro e gelado confunde e me pergunto se é a chuva que lava a alma ou é a noite que lava a cidade?

Quando enfim anoitece, a cidade descansa, e uma estranha personagem ganha vida, com seus muito mais de 16 mil pares de olhos, e mais de 20 mil pares de sapatos. Sapatos estes, conduzidos por mais tantos e tantos pares de pernas, que ora funcionam e ora não. Que quase sempre andam apressadas, mas que também tropeçam embriagadas.

É uma personagem grande, que ocupa mais de 15 mil metros quadrados, e tem mais de 13 mil metros de seu corpo revestido de concreto. Tem cerca de 1400 rodas. Se alimenta, em média, de oito mil pessoas por ano. Mantém sua estrutura com os pés que por ela passam eventualmente. Mas se nutre verdadeiramente dos que permanecem. Tanto faz se por muito ou pouco tempo, o que importa é que permaneçam o suficiente para deixarem algo de si e levarem um pouco na bagagem.

Há quem chame essa personagem de “Terminal Rodoviário Rita Maria”, ou, simplesmente, de “Rodoviária”. A maioria a vê, com olhos de ansiedade, enxergando seus quase 10 mil letreiros luminosos, como sinalizações apressadas de caminhos a serem percorridos. E quando é caminho, a grande despachante de bagagens vivas é também a alegria de uma chegada, ou a tristeza de uma partida. No entanto, há quem se recoste no seio de concreto dessa mãe protetora, e para os que não veem outra saída, a Rodoviária também é casa, também é abrigo.

Dentre os muitos acolhidos, a Rodoviária teve seus próprios filhos. Não filhos gerados do cimento, mas meninos de seus quatro, cinco anos que nela encontraram moradia. Esses meninos, não conhecem outra rotina. (Sobre)vivem à realidade das drogas, do alcoolismo, da prostituição e da exploração sexual. Habitam a enorme suíte comunitária, usando seus banheiros gratuitos, e fazendo de suas cadeiras de plástico algumas não tão confortáveis camas. Alimentam-se de restos e metades que, por falta de tempo ou de apetite, transeuntes apressados rejeitam nas lanchonetes e deixam sob os balcões, sem imaginar que o alimento tenha tal destino.

A gigante cinza e acolhedora esconde em seus cantos paixões que não podem, não querem, ou não conseguem ser vistas fora desses refúgios. Foi passando por um desses cantos que me deparei com o olhar envergonhado de um casal de meninas, e aquele olhar me apresentou ao silêncio. Um silêncio marcado pela minha insensibilidade, rompido apenas, por uma pequena marquinha, que uma delas trazia perto do pulso, e que, apesar de pequena, entrelaçava dois símbolos do sexo feminino, gritando aquela vontade para quem quisesse ouvir, inclusive para mim. Nesse grito, perfurado na pele incansáveis vezes até tatuar, elas também me apresentaram à coragem.

A coragem é uma fiel companheira do fiscal de operações Vilson Adelino Espíndola (60), responsável há 28 anos pela segurança da rodoviária, durante seis dias da semana no período das seis à meia-noite. Apesar de não gostar das situações que seu trabalho lhe impõe, Sr. Vilson diz que aprendeu a conviver, e, inclusive, a entrar no mundo daqueles que por lá transitam. Aprendeu a olhar e buscar a necessidade de cada um e, também, a deduzir as aparências do que oferece e do que não oferece perigo. Convivendo com os casais homossexuais que por lá se refugiam, por exemplo, diz ter compreendido o amor de uma nova forma.

Certa vez, durante sua empreitada, o incansável guardião das noites deu de cara com a Mulher-cachorro. Não se sabe ainda o quanto humana e o quanto animal é a criatura. Conta-se apenas a história de quando ela tentou passar despercebida pela rodoviária, levando um embrulho com peixes para dentro de um ônibus. Sr. Vilson bem que tentou pedir, argumentar, mas a Mulher-cachorro, enfurecida, agarrou instintivamente o pescoço de um homem e, quando Sr. Vilson tentou tomar as rédeas da situação, a criatura deferiu-lhe uma mordida na mão. Ele exibe a cicatriz, e até se diverte lembrando o caso, uma vez que o sufoco passou. A mulher-cachorro nunca mais foi vista. Já a gigante cinza, a quem tive o prazer de conhecer, cochila esquecida, a espera de uma nova visita que relembre suas histórias e seus personagens, e que dê vida a sua enorme estrutura de concreto, nem que seja só por uma noite.
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Ana Maria Ghizzo, 19 anos, estudante de Jornalismo. Gosto de olhar as pessoas e imaginar como são suas vidas, pensar no que as deixam felizes e no que as fazem sofrer. Amo o mistério e a sensação de que o Mundo todo é maior que o meu mundo. E nesse Mundo todo me deparei com a Gigante cinza.

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