domingo, 19 de junho de 2011

AMOR FATI

Todo dia centenas de pessoas, cachorros, gatos, ratos e outros animais circulam pela rodoviária Rita Maria. A construção antiga permanece intacta aos olhares entusiasmadamente progressistas de quem pisa pela primeira vez na "Ilha da Magia". Portal de entrada e saída de milhares de turistas, é nesse local de corredores escuros, ora cheios, ora vazios, que história se passam. Cantos guardam segredos entre as escadarias que separam o térreo movimentado e o andar de cima vazio. 

Há quem pense que rodoviária é lugar de onde muitos se vão e poucos ficam. Mas como todo local público, passam por ela viajantes, mas também funcionários e abrigados. Os corredores que rodeiam a construção abrigam maltrapilhos sentados em calçadas sujas pedindo "uma moedinha pra inteirar aqui moça". Logo, todos os outros fazem do corredor uma fila de vendedores onde tudo é válido para chamar a atenção. Olhos amedrontados apressam os passos de quem se sentiu em perigo ou despertam curiosidade nos que param para dar um pouco de atenção requerida. 

Cenas deslumbrantes realçam olhares por toda parte. Em meio ao movimento rápido de malas sendo arrastadas entre o ponto de partida e o ponto de chegada uma cena se destaca. Abandonado, o cachorro marrom, de arca alguma e de lugar nenhum, se fixa sentado no corredor. Olhar carente gira o pescoço pro ponto de partida e, alguns segundos depois, pro ponto de chegada. Nesse exato momento, milhares de pessoas e animais deixam pensamentos e marcas de decisões como a de partir ou chegar.

Traços expressivos compostos pelo olhar vazio caracterizam a moça sentada ao lado da catraca de entrada do banheiro feminino. Uma placa avisa o preço para usar o banheiro: "50 centavos". Para o controle da empresa que cuida da manutenção do lugar, é necessária a figura humana ao lado da catraca. O mau cheiro infesta o banheiro todo fazendo com que a opção entre o gratuito e o pago seja incontestável. 

A mulher ao lado da catraca é Vanderlea. Morena de olhos azuis e vibrantes, trabalha há cerca de dois anos no banheiro privado do terminal Rita Maria. Paranaense, mudou-se para Florianópolis com suas quatro filhas após se libertar de um casamento de 17 anos. "Cheguei sozinha com minhas meninas e logo arranjei um trabalho aqui mesmo”. Vez por outra, ela pensa em abandonar o trabalho por causa do perigo que o turno noturno na rodoviária representa.

Entre os funcionários que se dividem em turnos curtos para cada função, como cuidar da catraca, limpar o banheiro, limpar o chão de todo o terminal, há sempre aquela funcionária que se comporta como líder do grupo. Mandona, decide a hora do intervalo de todos. "Esses dias ela queria que eu limpasse merda dos outros", indigna-se Valéria.

"Não estudei, não sou formada em nada, vou fazer o quê, além de limpar chão?", justifica Vanderlea quando pensa se teria um emprego diferente do qual trabalha. "O que me atrai nisso tudo é que a cada dia conheço alguém diferente". Afirma-se contente em conseguir cuidar de quatro meninas e ainda trabalhar, muitas vezes, em dois turnos para conseguir o dinheiro das contas no fim do mês. 

Vanderlea é uma das coadjuvantes das diversas historias que permeiam todos os dias no ambiente de trabalho da rodoviária. Referindo-se ao namorado como "o morenão da Paulo Tur", explica que mora com ele há quatro meses, mas "não acredito que ele possa se apaixonar por uma mulher que varre o chão". Vanderlea preza pelo segredo de seu namoro: "Ele é formado e tem um bom emprego, é vergonhoso namorar comigo." Mas, não é só isso que sustenta o fato em segredo, ela é apaixonada por outro que trabalha na mesma rodoviária. 

"Estou sempre procurando problema, pareço uma menina de 15 anos", diz, em alusão ao "amor fati" que sente pelo sujeito misterioso. Para Nietzsche, "amor fati" é amar o justo e o injusto, o próprio amor e desamor. Vanderlea se aproxima da força do afeto nietzchiniano quando joga ao destino seu amor pelo misterioso, deixando assim que o tempo resolva seus conflitos da maneira como deve acontecer.

Por Madalena Giostri

Nenhum comentário:

Postar um comentário