quarta-feira, 15 de junho de 2011

Ponto de ilusões e histórias desconhecidas

Rita Maria resguarda lembranças nas cadeiras de cor laranja por onde passam personagens anônimos

Ele anda todo pomposo. Usa camisa, jaqueta de couro, crachá, calça jeans, meia social e sapato preto. Aparenta meia idade e já leva consigo marcas do tempo e sinais do trabalho diário. Não demonstra o desgaste físico de alguém que tem um trabalho árduo. Mas tem as mãos de quem, muitas vezes, têm de retirar homens ou mulheres do terminal rodoviário. Vilson Adelino Espíndola não gosta de usar a força, mas admite que às vezes é necessário. Em todo espaço público, sempre tem um responsável por cuidar do ambiente, das pessoas que o envolvem, dos funcionários. O fiscal do Deter – Departamento de Transportes e Terminais – prioriza bons resultados. Demonstra confiança em sua fala precisa e dá voltas em sua aliança, símbolo de sua família, com quem precisa se preocupar enquanto trabalha na sua última opção de emprego, no qual esta há 28 anos. Ele precisa zelar, pelo menos em seu horário de trabalho, para que as coisas não percam o rumo no Terminal Rodoviário Rita Maria. Seu turno é o da noite, das 18h às 24h. Ele adverte que a rodoviária pode ser uma bomba relógio.

Uma bomba que pode muito bem explodir nas mãos de Vilson, que tenta sempre ter um bom relacionamento com todas as pessoas que transitam pela rodoviária. Quando avistou um grupo de pessoas estranhas conversando na escadaria, já sabia quem tinha de procurar. A que parecia líder do grupo, falante e esbelta. Cabelos negros, simpática. Ele consegue distinguir quando o grupo parece perigoso ou não, quem é amigo de quem é inimigo. Define isso de acordo com as características físicas das pessoas. O Sr. Espíndola já viu e ouviu muitas histórias no terminal rodoviário. Algumas marcaram seu modo de ver as coisas. Era preciso olhar para ver, acreditar no que estava acontecendo. “Uma cena que me impressionou foi o encontro de dois meninos rompendo o relacionamento amoroso”. E a partir daí começou a compreender que era possível o amor entre dois homens. Aprendeu a lidar com as situações e a aceitar as diferenças. É preciso uma boa dose de tolerância e uma bem menor de moralismo para presenciar dois homens, juízes, se masturbando no banheiro. Ou para tirar das mãos de uma mulher uma sacola de peixe no feriado da páscoa, a senhora que não admitia não poder viajar com o alimento. E, em protesto, rasgou a sacola em cima de sua cabeça, fazendo o sangue do animal cair sob o seu corpo. “Viajou daquele jeito”, recorda o fiscal. Ele só estava cumprindo ordens.

Os olhos do Terminal

São apenas dois vigilantes e um supervisor que cuidam da segurança do terminal. Tem que dar conta das pessoas que vêm pedir dinheiro na rodoviária. Na rua não é proibido pedir dinheiro. Mas no espaço do terminal, é considerado aliciamento ou extorsão. Há os que vão à procura das lojas para assaltar. Há os que simplesmente sentam em algum canto para se drogar. Há também aqueles que fazem da rodoviária seu lar, sentam no banco e dormem. Esses não incomodam ninguém. O que preocupa o fiscal são os que mostram algum tipo de perigo, os marginais que podem por um segundo tirar a vida de alguém em busca de droga.

Para lidar com a situação, Vilson se mostra superior e declara que “aprendeu a viver no mundo deles” e trabalha com o psicológico das pessoas. “O diálogo muitas vezes resolve, o olho no olho”. Ele tem poder para dar voz de prisão a qualquer pessoa dentro da rodoviária. Mas prefere conversar, oferecer um café, comprar um lanche. Ele já presenciou adolescentes, adultos, moradores de rua passarem pelo local, os “filhos da rodoviária”. Alguns conseguem estruturar sua vida, outros morrem. Assistentes sociais passam no Rita Maria levando algumas refeições, mas não é o suficiente. “Deveria ter um controle de pessoas que chegam aqui iludidas com emprego, mas não tem”, sente Vilson. O fiscal também conta que em cada dia da rodoviária é possível encontrar pessoas com perfis diferentes. Na sexta-feira, são os “baladeiros” que passam pelo terminal. No sábado, os homossexuais fazem da rodoviária seu ponto de encontro.

Nem sempre a primeira impressão é a que se deve levar como prioridade.

Ao ouvir um arroto estrondoso dentro da rodoviária, a primeira pessoa a ser considerada o “arrotador” era um senhor que estava cambaleante e tropeçando nas próprias pernas, enquanto esperava o seu ônibus. Alguns até desconfiavam que se tratasse de um morador de rua e não um simples passageiro. Mas, para o espanto de todos, quem estava arrotando era uma menina. E fazia isso por graça. Em pé, de blusa listrada em frente aos seus familiares, ela mexia na barriga e preparava a emissão ruidosa arrombante.

O senhor que estava visivelmente alterado era Newaldo Broeto. Andava de um lado para o outro, até que avistou o nosso grupo de estudantes e começou a se soltar. Conta que perdeu uma passagem e comprou outra. O italiano mostrava sua identidade para lembrarmos do seu sobrenome. O cheiro de cachaça emergia como um perfume barato que gruda no corpo. Começou a destilar sua vida, como se fosse um copo de bebida. A perda da mulher depois de quarenta anos de casamento, foi o motivo alegado para fazer Newaldo começar a beber. Não era um andarilho, adverte, mas um trabalhador que serviu o exército. Diz que é dono de uma propriedade no bairro Ingleses. A boca levemente machucada denunciava efeito do “copo”, da “pinga”, como ele gostava de repetir. E enquanto estava ali queria se mostrar simpático, contando piadas. Pergunto por que não estava levando uma mala e ele retruca: “Não uso mala, minha mala é o meu corpo”.

A terça-feira era chuvosa, gelada e vazia

Duas meninas que pareciam um casal de namoradas tentavam encontrar seu lugar para conversar à vontade. Enquanto algumas pessoas pensavam em se aproximar ou não para conversar, era possível imaginar o que elas estavam procurando. Vilson nos mostrou os esconderijos dos amantes. Um pequeno espaço, no chão de pedras com um portão servia de refúgio para quem queria dormir, descansar ou se entregar aos beijos até ser pego.

Um senhor negro, com seus 51 anos de vida que retirava o lixo na parte interna e externa da rodoviária avistou as duas meninas, desconfiou, expulsou-as do canto escuro e distante da luz do terminal. Ele anda mancando, arrastando um recipiente onde colocava as sacolas de lixo cheias. Simpático, demonstra afeto com os desconhecidos, disposto a contar a sua história. A sair do anonimato que carrega, observado de canto por quem passava. Casado, com filhos e netos gosta de trabalhar na rodoviária. Não teria ele outro emprego, mas sabia que precisava trabalhar no terminal. Parecia não ligar quando se falava de folgas. “Tenho folga uma vez na semana”, conta Sr. Jorge da Silva, que estava cumprindo seu horário. Naquela noite fria, a chuva não demonstrava incômodo ou preguiça. Ele caminhava sozinho e sempre cumprimentava ou conversava com alguém no meio do caminho. Parou até para comprar remédio e quase o esqueceu dentro da farmácia. Se não fosse a atendente a alcançá-lo, teria lembrado só quando começasse a sentir as dores causadas pela falta do bendito remédio. Deve ser o joelho, pensei. Ele diz que já foi jogador de futebol.

Detalhes de um sábado radiante

As pessoas eram diferentes na tarde de sábado, pareciam mais alegres. Quem estava trabalhando parecia estar brilhante como o sol. Duas faxineiras varriam a parte externa e recolhiam o lixo conversando, como se estivessem passeando. Mulheres sempre andam juntas. Seja em qualquer trabalho, gostam de colocar o assunto em dia. Quem chegava de viagem nem se estressava com a demora para alugar um carro. Um casal sentado do lado de fora, olhava o tempo, se acariciava pensando no fim de semana que tinham pela frente. Até a pomba saltitante ia deixando suas penas pretas pelo chão. A pomba da rodoviária era preta. Tinha o pescoço roxo e a pata rosa. Enquanto dava seus pequenos passos, muita coisa acontecia ao seu redor.

O pipoqueiro que aparentava ter 1,60 de altura falava com todas as pessoas que passavam por sua barraca. Se alguém caminhava lentamente e ele sentia que a pessoa estava perdida, já se mostrava prestativo e lhe indicava alguma direção. O paulistano conta que gosta de trabalhar, tem um bom retorno e nunca foi assaltado. Diz que é a “política da boa vizinhança”. Trajando uma camisa pólo verde musgo e uma calça jeans, o homem de poucos dentes se chamava José Roberto Favini. Seus 60 anos o carregam todos os dias, há um ano, para o terminal para trabalhar no período da manhã, das 6h30 às 10h. No outro período, seu irmão e sócio assume seu lugar.

Favini trabalha por opção, mora com a mãe de 82 anos e não liga de almoçar pão e carne. Mandou trazer da padaria um pão e dois tomates, a carne ele traz de casa. Sua barraca chama a atenção para “Pipoca especial”. Mas nem todos sabem que o caráter do senhor de cabelos brancos é o que tem de mais cativante ali. As cores de seu instrumento de trabalho simbolizam seu jeito de ser. O branco, o seu lado calmo, puro, em paz com a vida. O vermelho desperta o amor que ele transmite pelo seu trabalho. E o amarelo, a sua descontração e otimismo. Ele tem três filhos, três netos e também é agricultor, além do seu trabalho na rodoviária. Ele importa e vende com outro irmão que mora na Bahia. A fazenda tem plantio de cacau, pimenta, cravo e guaraná. Pergunto o motivo de trabalhar diariamente na rodoviária, ele dá uma dica: “A melhor moeda do mundo é a que a gente tem na mão”, diz José. Ele que segue o ditado de que “nada se leva dessa vida”, passa uma lição de sabedoria em poucos minutos de conversa.

Favini tem cinco irmãos, dois ficaram em Florianópolis, um em São Paulo e os dois agricultores no nordeste e norte do Brasil. José também dá pipoca a todos que pedem. Lembra de uma senhora que na semana santa não tinha dinheiro e a criança chorava. Ele foi lá e ofereceu uma pipoca. Comovido, o pai da criança na volta deu R$ 20 para o pipoqueiro e saiu sem dar tempo de receber o troco. O Sr. Favini sabia o motivo do dinheiro. Enquanto o pipoqueiro concentrava seus minutos de folga conversando comigo, uma mulher parou ao lado da barraca para pedir informações.

A supermãe

A mulher chamava a atenção pelo conjunto, estava segurando um carrinho de bebê, com uma pequenina, uma manta e algumas sacolas penduradas. Trazia os dois filhos gêmeos, segurando o carrinho de mão, andando com bolsas iguais separadas pelo nome escrito à caneta azul. A família caminha em direção ao banheiro feminino. Eu segui meu instinto e fui atrás.

No banheiro, a supermãe trocava as fraldas da menina de sete meses. Os dois irmãos aproveitavam para encher um copo plástico de água e sabão líquido que estava encima da pia. A bagunça estava feita. “Mãe o Derick ta comendo sabão.” E eu curiosa em saber como ela lidava com três filhos e viajava sozinha. Ela veio encontrar o marido e pai das crianças, que já estava com a mala, o que diminuiu sua bagagem. Direto de Curitiba desembarcaram Eliane, a mãe com 24 anos, Endrious e Derick, os gêmeos e Rebeca, a pequena de sete meses. A mãe vestia uma blusa cinza de lã e boina preta. Os gêmeos usavam bonés. O de Endrious era do hot wheels, um desenho de carrinhos. Erick preferiu o das Casas Bahia, que seu irmão dizia ser o da Tele Sena, porque Erick adora o Silvio Santos. Os dois eram vermelhos. Eles gostam de andar com roupas iguais. Usam óculos. Mas o que os diferencia são os seus gostos. Os irmãos gostam de chocolate, mas Endrious vai no bolo de chocolate e Derick no brigadeiro. Os dois fazem do lanche no terminal uma festa. Enquanto a mãe tem que comer, dar comida à Rebeca, também tem que colocar os pastéis de carne e queijo no prato, senão eles deixam cair no chão. Enquanto isso, a bebê tentava engolir o tênis do irmão. E Derick arriscava se equilibrar de joelhos no mesmo momento em que tomava um suco de laranja. E os gêmeos iam contando suas histórias. Os dois têm janelinhas. Derick tirou um dente com a mão e guardou embaixo do travesseiro. Já seu irmão preferiu que tirassem com alicate, mas também não deixou de fazer um pedido para a fada do dente.

O paladar deles é incomum para algumas crianças. A mãe conta que certa vez foram à churrascaria para fazer um programa diferente e os dois queriam comer salada. Pergunto qual salada vocês comem? Derick respondeu: “quiabo”, e Endrious: “vagem”. Respostas distintas para dois irmãos gêmeos que perambulavam e se divertiam, tornando visível que o espaço público da rodoviária é singular, inconfundível e sedutor. É preciso olhar para ver realidades desconhecidas, relatos comoventes e extraordinários num espaço público que está diante de nós, mas que quase ninguém percebe. Ao lado da ponte histórica da Ilha Mágica.

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Ana Paula Santos, 21 anos. Paranaense morando em Floripa, estudante de Jornalismo, virginiana. Gosta de assessoria de imprensa, mídias sociais, produção e edição de vídeos. Já fez estágio no Ministério Público de Santa Catarina e atualmente trabalha na Dialetto Comunicação.


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