terça-feira, 7 de junho de 2011

Florianópolis: cidade obscura

“Fama & Anonimato,(...) representa minha visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura de admiração e espanto, e me lembra também de quão destrutiva uma cidade pode se tornar, quando ela promete muito mais do que pode cumprir, e de como estava certo E. B. White quando escreveu, muitos anos atrás: ´Ninguém deve vir morar em Nova York a menos que esteja disposto a ter muita sorte’”.

Esse depoimento de Gay Talese me fez parar para pensar em que “Ilha da Magia” vivo? Onde está a magia? E principalmente quem enxergamos e quem escondemos nessa Ilha? Nem foi necessário ir tão longe, bastou andar pelo centro ou dar uma olhada em volta do Terminal Rodoviário Rita Maria. Olhava para todos nas ruas, transeuntes ou comerciantes, artistas das ruas, e imaginava: “Quantas histórias essas pessoas devem ter para contar”. Comecei então a pensar na vida das pessoas anônimas, seus dramas, suas ilusões, seus problemas. Em coisas que os jornais não costumam contar, por falta de sensibilidade ou por não ter coragem de narrar, de fazer das pequenas coisas da vida uma história, uma matéria jornalística.

Em uma dessas minhas andanças não resisti em apenas observar. Então ao passar pela Felipe Schmidt, esquina com a Trajano, resolvi falar com um homem que quase sempre me vendia pipoca. Seu José, um sujeito tímido, que sempre me passava um ar de homem meio grosso, austero e desconfiado me surpreendeu quando desembestou a falar. Ele me disse: “eu falo com a senhora sim, mas vai sair no jornal?”. Disse que não. Então ele falou: “Não tem importância, pode me perguntar que eu respondo. Tem gente que nem bom dia me dá. Você pelo menos parou para conversar comigo”. José de Souza era um pouco espaçoso em todos os sentidos, pois além de meio barrigudo era também meio repórter. Volta e meia me falava: “Anotou isso aí? Entendeu o que quis dizer? Escutou isso? Interessante, né?”.

Casado, com dois filhos, aos 60 anos e aposentado, resolveu vender pipoca nas ruas de Florianópolis, não porque sua aposentadoria não conseguia prover as contas de casa, mas porque seu filho mais velho de 18 anos se formará no ensino médio no final deste ano e ele pretende pagar sua universidade. “Meu filho é muito inteligente, quer ser advogado, então se ele não passar no vestibular pagarei uma faculdade particular mesmo. Já estou juntando dinheiro para isso. O dinheiro que consigo com a venda não é aquelas coisas, mas ajuda e ajudará muito. E é um dinheiro que usarei só para a faculdade do meu filho. Continuarei a vender pipoca até minha filha mais nova que agora tem treze anos, se formar também”.

José é professor aposentado e formado em geografia. E não se arrepende de ter cursado uma universidade e acabar vendendo pipoca. “Não me arrependo nem um pouco de ter cursado uma faculdade e depois de aposentado vim para as ruas vender pipoca. Quando entrei tinha noção que professor não ganhava tão bem, mas era minha paixão e não tenho do que reclamar. Consegui comprar minha casa, meu carro, e dar um pouco de conforto a meus filhos. E se meu salário não foi o bastante para ter condições de pagar uma faculdade para eles, por amor voltei a trabalhar nas ruas. E sei que essa minha condição serve como orgulho para ele e não como pretexto para que ele não queira ingressar em um curso universitário”.

“A rodoviária é uma bomba-relógio”. Essa frase é de Vilson, chefe dos seguranças da Rodoviária de Florianópolis. Traduz bem o que o Terminal rodoviário e seus arredores representam. Uma conversa que tinha tudo para ser desinteressante inicia-se e me faz ter vontade de cada vez ouvir e escrever para e sobre os que não têm voz. Quem diria que aquele homem de 60 anos, calvo, com rugas aparentes e jaqueta de couro, morador da cidade de Palhoça iria ter tanto a dizer sobre Florianópolis com tanta compreensão e desembaraço?

Há os que trabalham, os que passam por lá, e os que não têm para onde ir. Esse ancoradouro de ônibus tem muito para nos contar. Algo do passado e do presente. O terminal rodoviário há anos atrás foi abrigo de moradores de rua, prostitutas, esmoleiros e usuários de drogas. Hoje se pode dizer que é um lugar seguro para os que transitam por lá. Mas a sujeira foi jogada para debaixo do tapete. Ao redor do terminal ainda transitam esmoleiros ou pessoas que moram na rua e tentam sobreviver com um trabalho que encontraram para ganhar dinheiro e passar o tempo.

Na Francisco Tolentino, perto da passarela que se inicia no Rita Maria, travestis posam como vitrines humanas. E logo mais acima, na rua Conselheiro Mafra ficam as garotas de programas. Estranho é que ninguém percebe e ninguém vê. É só cuidar dos jardins e passar uma camada de asfalto que está tudo bem, tudo bonito. As belas praias dão um toque final para completar o êxtase total dos visitantes da Ilha da Magia. “Mas não posso me equivocar, quando o terminal Cidade de Florianópolis passou a ser morada de mendigos, a Prefeitura de Florianópolis tomou uma atitude, com o auxílio da Polícia Civil que não tinha efetivo para capturar bandidos, os moradores de rua foram ´varridos´ do Terminal. Ou seja, sujeitos resumidos à sujeira!”.

Tudo isso me faz lembrar um garoto que conheci na infância e que hoje se intitula mulher. Tudo aconteceu gradativamente. Sua aparência, sua aceitação, seus relacionamentos foram aos poucos sendo descobertos por ele e pelos outros. Primeiro Carlos Alexandre, era assim que se chamava, agora Amanda, tomou a coragem de deixar seus cabelos crescerem, pintou seus cabelos, tirou as sobrancelhas e cutículas, coloriu suas unhas e encarou os colegas que o acompanharam desde a infância. Mesmo assim foi difícil, mas por serem amigos, aceitaram. Ao retroceder um pouco na história de Carlos Alexandre ou Amanda pude perceber que se trata de um sujeito esquecido. Quem é que vai se preocupar com as desilusões amorosas ou com o cotidiano de um travesti? Um homem que se enxerga mulher age como mulher, aspira casar e ter filhos, e como qualquer outra pessoa tem problemas, às vezes até mais grave.

Certa vez, Amanda me contou que foi agredida na avenida Mauro Ramos quando estava na esquina de madrugada trabalhando como garota de programa. No entanto, ela não deixou a profissão porque gosta dessa vida banhada em sexo, drogas e luxúria. “Eu gosto de fazer programa. Mesmo que não ganhasse dinheiro, faria mesmo assim. Gosto de dar. Todos os homens que atendi conversam comigo, dizem que sou linda e delicada. Fui agredida poucas vezes, mas não por clientes, são pessoas recalcadas que têm vontade de me pegar, mas não dar o braço a torcer”.

Como é possível não consegui enxergar o que se passa em nosso nariz? Seu Vilson, o chefe de segurança da Rodoviária foi capaz de ver em meio a toda a marginalidade que cerca aquela estrutura maciça de idas e vindas, de encontros e desencontros, as perturbações que podem existir em pessoas que não são vistas como pessoas, ou sequer são vistas. “Tenho consciência que os mendigos precisam mais que um prato de sopa, mais que um sanduíche. Eles precisam de ajuda. Eu vi a evolução de alcoólatras, prostitutas e moradores de rua. E o mais curioso, foi na Rodoviária que a primeira vez tive a oportunidade de compreender o que é o amor entre dois homens”.

Saber valorizar a vida (natureza, bichos e homens), os sentimentos e as normalidades e estranhezas da vida. Minha viagem pela rodoviária teve o sentido de contar a história dos anônimos e do sistema de invisibilidade que faz de homens e mulheres seres esquecidos e marginalizados. E a partir da sensibilização dos seres desenvolver a capacidade de entender e retratar histórias de uma terra de magia, encantos e bruxarias por completo. Ou seja, falar dos perfumes das flores, mas não se esquecer da escuridão e do cheiro fétido dos bueiros.
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Láira Calixto nasceu em Minas Gerais, tem 24 anos, é professora primária formada, graduanda da 5º fase de Jornalismo da UNISUL. Amante da poesia e do amor. Denomina-se uma mulher apaixonada. Pois segundo ela o amor não nasce dentro do seu peito, pelo contrário ela nunca morre.

Um comentário:

  1. Adorei seu texto! Obrigado por deixar minha tarde mais reflexiva às passagens cotidianas da Ilha.

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