terça-feira, 31 de maio de 2011

A vida é uma rodoviária

Histórias de vidas surpreendentes em um lugar no Terminal Rita Maria

Dizem que a vida é como a rodoviária. A rodoviária é um lugar de trânsito, onde pessoas vêm e vão ao ritmo da mudança nos letreiros luminosos. É um lugar de reencontros amorosos, de vidas que de alguma forma o destino cruzou. Mas também é local de trabalho, onde pessoas carregam histórias surpreendentes. É porto de passagem, mas também é memória.

No Terminal Rita Maria, em Florianópolis, ao lado do desembarque encontrei Eliane, com um de seus ombros encostados na parede, observando aquelas pessoas que se movimentam e mudam completamente de rosto.

A mulher de pele morena, que mantém limpo e agradável o banheiro ao lado do desembarque, vem de Biguaçu quase todos os dias, e troca seu suor por um salário mínimo no final do mês. O valor de R$ 545 foi estipulado como salário mínimo de um cidadão de carteira assinada pelo governo federal brasileiro no início deste ano. A quantia deveria suprir as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, como alimentação, moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Mas não é o caso de Eliane, que recebe em mãos menos de um salário mínimo, pois desta quantia é necessário descontar INSS, e os tais benefícios, vale-transporte e alimentação.
Mesmo assim, Eliane diz gostar de trabalhar no lugar. “Eu gosto de trabalhar aqui porque todo o dia é diferente. Já estou há um ano e meio e ainda não tenho vontade de ir embora. Fiz bastante amizade com o pessoal que trabalha comigo, e já conheci muita gente”, contou-me em meio a tantas outras estórias.

Eliane realmente deixa aquele banheiro impecável que custa R$0,50 para ser utilizado. No final do dia, um supervisor confere a quantia. Se faltar algum trocado, Eliane tem de pagar. Para uns, 50 centavos é apenas uma moeda, um trocado, mas para ela é seu trabalho e custa muito.
A faxineira quase sempre fica do lado de fora do banheiro, vendo o movimento e aguardando alguém que a perceba para conversar. Quando então decidi puxar conversa, não parou de falar por um minuto, fez questão de contar estórias impressionantes sobre o seu dia a dia. Mostrou que sofre com um preconceito muito grande pelo fato de trabalhar em um banheiro público.
Começa a trabalhar no início da tarde e termina à noite, por volta das onze, e tem direito a uma folga a cada quatro dias. Para a moça, finais de semana e feriados não foram feitos para descasar. A faxineira não tem aquela rotina corriqueira dos órgãos públicos. São oito horas por dia, recolhendo lixo, limpando o chão, os espelhos, os bacios, e a má-educação daqueles que não respeitam o seu trabalho.

“Algumas pessoas acham que têm o rei na barriga, e se recusam a pagar. Tem dondoca que diz que é um absurdo pagar 50 centavos para usar o banheiro. Garanto que o “perfuminho” caro ela não se recusa a pagar. Ontem mesmo passou uma dessas aqui. Ela entrou, usou, fez o que queria e ia sair sem pagar de nariz empinado. Mas eu disse que ia meter a porrada se ela não pagasse, e pagou rapidinho”, disse convicta. E completou: “Tem gente que avacalha, jogando merda na parede, em cima do tampo, mijando fora do bacio. É horrível.”
Com seu sotaque ilhéu, ela também disse algo a respeito das recepcionistas, que “se acham as gostosonas” e que só ganham R$ 50 a mais que ela.

Mas Eliane não trabalha todos os dias naquele banheiro do lado do desembarque. As faxineiras cumprem um esquema de revezamento: umas ficam no banheiro pago, ao lado do desembarque, outras no embarque, no lado oposto da rodoviária, onde fica o banheiro gratuito. Outras ainda limpam o chão e as cadeiras de espera dos passageiros, no primeiro e segundo andar. A moça afirma que prefere ficar no banheiro, pois é “mais tranquilo e tem a cadeira para descansar as pernas”.
Perguntei o que eram aqueles compartimentos ao redor do banheiro. Ela disse que eram guarda-volumes. “Isso daí são guarda-volumes. O pessoal guarda as malas aí quando não pode levar. Uma vez um cara deixou a mala de um casal que ele trouxe e não conseguiu levar. O casal apareceu aqui depois de um tempão para pegar a bagagem e teve que pagar R$ 250, tu acreditas???”, disse a faxineira, perplexa com a quantia.

Em meio a nossa conversa, chega um homem negro, com aproximadamente 60 anos, vestindo o uniforme da empresa que presta serviços de limpeza e segurança para a rodoviária. Com uma pá em uma das mãos e uma vassoura na outra, ele reclamava de dores no joelho. Disse que quase não foi ao trabalho para ir ao hospital. Foi quando perguntei ligeiramente: “Porque o senhor não pega um atestado?”. Ele olhou para Eliane, como se tivesse denunciando a minha ingênua ignorância e disse com os olhos arregalados: “E tu acha que adianta? Eles descontam mesmo assim, minha jovem”.
Papo vai papo vem, o faxineiro não deixou de falar sobre a injustiça que a empresa a qual ele é contratado, assim como Eliane e todos os faxineiros. Disse que o Governo do Estado repassa para a empresa o valor de R$1.400 para cada empregado e que a empresa por sua vez, repassa apenas um salário mínimo, ou seja, menos da metade desta quantia.
Fiquei boquiaberta, com tamanha injustiça. Pessoas humildes, honestas, e de bom coração que não podem reagir à luta por seus direitos, pois necessitam do trabalho, como eles. Essa gente faz parte do nosso cotidiano, mas fingimos que não vemos, e somos levados a achar que essa condição é natural.
Descobri seres humanos maravilhosos naquela terça-feira à noite, e que cada um deles transporta uma história peculiar, como a rodoviária, uma bíblia de encontros e reencontros de vidas que se transformam ao longo da trajetória.
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Luana Costa é estudante de jornalismo na Unisul e estagiária na Eletrosul
Centrais Elétricas S.A. Aos vinte e poucos anos, acredita que para levar uma
vida saudável, basta ter paciência, saber escutar e compreender as situações das pessoas, beber água e usar protetor solar diariamente.

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