terça-feira, 31 de maio de 2011

Os pontos alaranjados do elefante cinza

O terminal Rita Maria é um elefante cinza. Nele, as cadeiras observam as centenas de pessoas que andam, correm e esperam

Durante a madrugada elas ficam quase solitárias, enfileiradas lado a lado, e aconchegam variados tamanhos de ancas enquanto os raios de sol brilham. Apesar dos momentos de solidão e de sustentação de peso, demonstram sempre uma alegria corada em seu corpo alaranjado, a única cor viva em meio ao cinza do Terminal Rodoviário Rita Maria. Um prédio de dois andares com espaço suficiente para uma grande festa, mas onde é possível se sentir solitário em meio às paredes cinzas. O Rita Maria é um elefante cinza. Nele, as cadeiras observam as centenas de pessoas que andam, correm e esperam. E sabem quando alguém tem ou não pressa. Geralmente, os apressados jogam suas coisas de qualquer jeito e procuram desesperadamente algo em suas bolsas e sacolas. Os que têm mais tempo sentam-se e até dormem aguardando a voz charmosa da rodomoça chamá-los para o ônibus no sistema de auto-falante. Outros aguardam qualquer pessoa – ou qualquer coisa - disposta a conversar.

Gilberto Reis aguardava os dois: o ônibus e alguém para conversar. Na mala, 57 primaveras vividas e 40 gravatas. Vestido com terno escuro, chama atenção pela elegância: “As pessoas não olham os outros pelo ser, olham pelo ter”. Para não carregar muitas roupas, carrega as gravatas, um detalhe, que para Gilberto, faz a diferença no look. Por trás do terno há, escondido, um tapa-olho de pirata. Durante o verão, Gilberto se fantasia de pirata nas praias do norte da Ilha. Mais uma forma de complementar a renda, e claro, tirar gargalhadas dos grandes e choros dos pequenos. Houve momento em sua vida que dispunha de dinheiro suficiente para estar bem de vida, mas gastou. “Hoje sou mais feliz quebrado do que quando tinha dinheiro”.

Há quem nunca olhe com atenção para as lixeiras da rodoviária a não ser para jogar algo nela. Jorge da Silva é faxineiro do elefante cinza e durante o percurso a caminho das lixeiras, duas vezes por noite, nunca encontrou nada de valor. Tem 51 anos, é negro, forte, cabelos brancos, combinando com a camiseta do uniforme da empresa Orcali, terceirizada responsável pela limpeza do terminal rodoviário. Trabalha tranquilamente cumprimentando os conhecidos. Jorge não se surpreende com as figuras que transitam na rodoviária, julgadas por muitos dos que passam de bêbados e andarilhos.

Há uma distância aproximada de 30cm é possível sentir o cheiro da cachaça no ar quando se ouve Newaldo Broeto. “É sério! Tô indo visitar meus filhos em Curitiba. Oh, tá achando que eu sou andarilho!”, diz Broeto ao repórter Rodrigo Schimitt quando lhe pergunta o que vai fazer em Curitiba. Newaldo é gaúcho e morador dos Ingleses. Vestia bermuda jeans e camiseta branca com sandália Havaianas azul, sem carregar nenhuma mala. “Minha mala é meu corpo”, diz Broeto, que a cada resposta dá uma divertida gargalhada e deixa, além do cheiro de cachaça, o perfume desconsertante do cigarro no ar.

Entre gestos que passam despercebidos na rodoviária estão os de um pipoqueiro. Apesar de muitos estranhos passarem por sua pipoqueira sem dar um “boa noite”, ele cumprimenta seus clientes e confia nos andantes apressados. Vende o saquinho de pipoca por R$ 3,00, mas deixa o comprador pagar R$ 2,00 na hora e o restante depois. Há quem nunca mais pague o R$ 1,00.

Nem todos que passam no Rita Maria estão dispostos a falar sobre si e das experiências no elefante cinza, mas há sempre os que aguardam por ouvintes curiosos. Ouvidos e olhos atentos e compreensivos. Funcionário do Deter responsável pela vigilância do terminal rodoviário, das 18 às 24 horas, Vilson Espíndola trabalha na rodoviária por falta de opção. “Só tinha vaga praqui”. Vive o impasse de trabalhar onde não gosta e ao mesmo tempo aprender neste local o que talvez não compreendesse fora da selva cinzenta e embriagada do terminal. Ele conta que há um fluxo maior de pessoas pela manhã e à noite, quando as pessoas vão e voltam do trabalho. Seus 28 anos de rodoviária fez perceber quem é suspeito ou não, aparenta perigo ou precisa de ajuda. Mas já se enganou. Quem vai imaginar que uma senhora bem vestida e bonita vai resolver dar peixadas nos seguranças do terminal? Na Sexta-feira Santa uma senhora bem vestida queria pegar o ônibus com uma sacola cheia de peixes comprados no Mercado Público. Os fiscais a informaram que não poderia fazê-lo. Mas um peixe frito ou assado deveria ser saboreado pela senhora que, na tentativa dos fiscais retirar a sacola das mãos da mulher, deu bolsadas de peixes nos homens. Outras vezes acerta. Os que aos poucos vão adotando a rodoviária como casa a cada dia aparecem com uma peça de roupa a menos, até surgirem com hematomas resultantes de brigas na rua. Vilson tem jogo de cintura para convencer os andarilhos a se retirarem do elefante cinza. “Chego abordando como vítima... Acima de fiscal, sou amigo de todo e qualquer dependente (químico)”. Segundo Vilson, falta policiamento e investimento em segurança e infraestrutura para atender os viajantes e trabalhadores. Ele e dois seguranças terceirizados (também da Orcali) são responsáveis pela segurança do terminal rodoviário no período noturno. “Nos últimos 15 anos, a segurança da rodoviária caiu 100%”. No entanto, há aproximadamente 20 anos, prostitutas, alcoólatras de rua e andarilhos frequentavam mais o terminal, muitas vezes em busca da canja que era oferecida no restaurante do segundo andar por um preço acessível. Quaisquer pessoas que sentissem fome poderiam esquentar a alma no restaurante hoje inativo, até mesmo por não haver outras opções nas altas horas das madrugadas de Florianópolis. Nesse período, o fiscal acompanhou o crescimento dos filhos da rodoviária: “Eu vi eles crescerem e virar adultos aqui”. Hoje a rodoviária é uma mãe que abandona seus filhos.

Em todo tempo de trabalho o que mais surpreendeu Vilson foi ver dois homens se beijando. “Vi que o amor entre dois homens é possível”. Ganhou sensibilidade e aprendeu muito. “O que a rodoviária fez de mim? Melhorar; cuidar melhor dos meus filhos; ver o que a minha mulher precisa; o que o álcool faz...?”. Tenta alternar a rigorosidade do trabalho de ser fiscal com o afeto que acabou desenvolvendo pelos personagens que precisa controlar e reprimir, sem esconder a tensão moral que isso lhe causa. “Eu tento que ser eu mesmo.”

“Moça me dá um real”, ouvi quando caminhava para a rodoviária. Acabara de comprar orelhas de gato para comer enquanto a aula não começasse no terminal. Como sempre, fiquei sem reação ao ouvir o clamor social. O homem estava sentado no chão, encostado na grade do estacionamento da rodoviária. Passei reto e ele me chamou de filha da puta. Parei; ele não terminou de pronunciar o palavrão. Voltei e entreguei a ele as orelhas de gato. “Oh, obrigada, querida”, disse ele, com um sorriso desdentado e sujo mais lindo do que muitos sorrisos amarelos direcionados para mim nos corredores dos cidadãos engravatados e visíveis da cidade. Entrei na rodoviária ainda tomada por uma sensação estranha de ter feito algo certo e errado. Sentei-me na escada preocupada sobre o que escreveria sobre esse gigante de onde se vem e se vai; até que olhei as cadeiras alaranjadas do terminal rodoviário, pontos alegres no elefante cinza, como as pessoas que por ele passam.
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Valéria Valdeci Martins é estudante de Jornalismo, técnica em Meio Ambiente, clarinetista e gestora cultural. Moradora do Ribeirão da Ilha é apaixonada pelas tradições culturais ilhoas.

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