quarta-feira, 3 de março de 2010

Álbum das Ruas

(Editorial do jornal Fato & Versão especial sobre a primeira vivência dos estudantes de jornalismo da Unisul com os moradores de rua, publicado em 2004)

por Raquel Wandelli

- De onde você é, Lurdinha?, arrisquei-me a perguntar.

- Eu sou da rua, tia.

Aos 20 anos, a rua é para Lurdinha o seu território. Ali gastou a infância, aprendeu a arranjar o pão, se fez mulher, teve uma filha, adoeceu, conheceu o desprezo e o amor verdadeiro. Desde que desceu do Morro do Mocotó, ranhenta e de pés descalços para estender as mãozinhas aos motoristas de sinaleira, nunca mais teve um teto, além do forro de estrelas ou de relâmpagos. A rua é sua casa. De meias paredes, móveis de pedra que mudam de posição a cada dia, onde o quintal é o próprio quarto. A rua grande, aberta, é o esconderijo das meninas espancadas, dos meninos explorados, que resistem à opressão.

A rua é mãe e madrasta. Acolhe os desvalidos em suas praças, viadutos e marquises, oferecendo-lhes tudo e nada. E também é o lugar dos proscritos e dos que se auto-exilam. Nas ruas há festa, paixão, ilusão, afeto, graça e riso. E as ruas matam lentamente de pneumonia, de tuberculose, de fome, de leptospirose, de depressão e de desamor. Os habitantes das ruas dependem do que dela tiram para viver, mas a rua é também um lugar de liberdade. Morar nas ruas é um gesto de desistência de toda forma de sistema - é um ato de covardia e também um ato de coragem.

Nas ruas se foge da escola, mas as ruas ensinam a pensar. Quem mora nas ruas não tem medo da morte, embora a vida esteja sempre por um fio. "Já perdi a conta de quantas vezes morri", diz Kátia. A gente aprende nas ruas que se morre muitas vezes em uma vida. Morar nas ruas é viver em meio aos ratos, à esmola, à sujeira, ao desprezo e à piedade dos passantes e ainda assim manter dignidade pra continuar sendo gente. A rua é o local de encontro de almas cansadas, onde se enlaçam amores eternos e amizades de ferro.

Quem mora nas ruas não tem medo de morrer, mas tem muito medo de dormir. Nas ruas se aprende com esses habitantes sem teto absolutamente estranhos e reais a amar os cães sem dono que vigiam o sono breve e assustado dos notívagos. É também o lugar de uma rede de solidariedade poderosa e silenciosa, em torno da qual sobrevive um exército de desvalidos e desesperançados. Nas ruas vinga o comunismo de verdade: a cachaça se divide, a droga se divide, o cigarro se divide, o cobertor se divide, as moedas passam de mão em mão e o resto de álcool na garrafa ferve para fazer a bendita bóia da noite, que gira uma louca ciranda, passa de boca em boca até que um alimento raso chegue a cada beco escuro para manter a vida desses olhos noturnos. A vida que insiste em brotar dos asfaltos.

E também se dividem as dores e as alegrias. Nas ruas se formam extensas redes de nômades, famílias de cúmplices sem sangue, que nada têm em comum – nem idade, nem história, nem origem - a não ser a luta para manter algo inominável que os caracteriza como humanos e, quase sempre, o vírus HIV. Famílias que penduram negros, analfabetos, letrados, loucos, inocentes e condenados, gente de berço e gente que nem tem memória, gente que parece ter nascido do repolho. Na rua dos Ilhéus há a ilusão de Piolho, que faz pinta de malandro, deitado em seu colchão, fazendo escárnio da dor e do frio, com quatro parafusos externos que remendam a fratura na tíbia e acreditando tirar vantagem dos que têm rotina, casa e comida quente: "Eu, hein, trabalhar por um salário mínimo, numa sala fechada, ficar com problema de coluna e tendinite nos dedos?" O conforto não paga o sacrifício. Quem mora nas ruas se negou a assinar o pacto fáustico, e a entregar sua alma ao diabo. Estar nas ruas é não ter o que perder.

A rua ensina a regatar os saberes mais simples. Para estar nela é preciso a sabedoria dos ventos, há que se adivinhar o frio, a chuva, é imprescindível saber o horário do sol. E também é preciso saber a hora que o restaurante fecha – antes de os restos irem para o lixo, o dia que o albergue não lota e quando o dono do hotel não vem para conseguir um banho mais demorado por R$ 3,00. Pode parecer individualista abandonar tudo para estar nas ruas – e de fato estar nas ruas pode ser o preço que se paga para ser um indivíduo -, mas muitos vão para as ruas para proteger as famílias de sua loucura, os deprimidos para que não compartilhem seu desespero, os aidéticos de seu definhamento. Da mesma forma, os alcoólatras e os viciados em drogas querem estar sós com seus vícios.

Nas ruas se aprende a amar o feio, o sujo, o ruim, a não ter nojo, a suspender os véus. Com esses seres noturnos a gente aprende a ser gente. E por nos livrarem de toda pena que não é compaixão, por nos terem feito sentir pena de nós mesmos, porque não sabemos fritar bolinhos em uma lata, nem suportar o vento Sul de madrugada, por nos terem feito sentir pena dos que trafegam na Beira-Mar e correm o risco de nunca conhecer gente como Piolho, Mari, Cleber, Dr. História, Lurdinha, Kátia..., por nos terem convidado para a janta, por nos terem confiado seus segredos, suas culpas, suas meias-verdades, por deixarem que alguns de nós passassem a noite ao seu lado, por tirarem a garoa de nossos olhos, nada temos a oferecer. Nada, além de un inventário incompleto da vida nas ruas, com as fotos de cada um e as histórias que nos contam. A narrativa é uma forma de se eternalizar no mundo, de driblar o destino da morte. Um povo sem imagem é um povo ameaçado de extinção, já escreveu Fernando Solana. E porque queremos que sejam eternos publiquemos agora seus nomes e seus rostos para cobrar seu direito à existência.

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