terça-feira, 31 de maio de 2011

Um “manézinho” chamado Gay Talese

Gay Talese, com seu olhar, têm os moldes para enxergar os despercebidos do terminal Rodoviário Rita Maria de Florianópolis

Nos textos de Gay Talese é possível perceber que os esquecidos não têm relevância na sociedade. O valor estético do texto aponta detalhes de animais e pessoas esquecidas em Nova York e também mostra as características dos personagens expostos de uma forma excêntrica.

O autor trabalha com dados, números e estatísticas. Mostra os detalhes dos personagens, como as qualidades e defeitos de um porteiro. Na rodoviária Rita Maria, em Florianópolis, também há um personagem que faz o papel do porteiro das reportagens de Gay Talese, mas o porteiro da Ilha da Magia permanece obscuro dentro de uma guarita de estacionamento.

O medo de não conseguir exercer a função corretamente, medo de ser surpreendido por um assaltante, enfim, o medo de não voltar pra casa. Isto é o que Carlos Alberto Pereira, de 54 anos, declara conviver diariamente. Trabalhando há três meses na recepção da rodoviária Rita Maria de Florianópolis, Carlos relata ser normal o convívio com ameaças e com o medo. Mas o curioso é que sua presença só é notada, na maioria das vezes, por pessoas que pedem favores ou que podem lhe passar perigo. A sua presença é vista de uma forma robótica por cerca de dois mil carros que adentram ao local diariamente.

Cenas de sexo, ameaças, brigas, roubos e drogas são assuntos recorrentes na vida de Vilson Adelino de Espíndola. Com 28 anos, o fiscal de operações do Departamento de Transportes e Terminais (Deter) no terminal Rita Maria, acredita que as pessoas que estão neste mundo obscuro da rodoviária, são vitimas da marginalidade que batalha e busca um pouco de dinheiro em troca do seu vicio. O fiscal completou seu pensamento com a seguinte frase: “É preciso respeitar o mundo dos despercebidos”.

Andar pela rodoviária é perceber um leque de cores, iluminações e aspectos de ilusão. A parte externa do terminal contém um cenário escuro e carrega um ar sombrio. A parte interior, onde fica a plataforma de embarque e desembarque, apresenta uma boa iluminação e uma estrutura que faz o papel de uma mãe, a mãe Rita Maria, que oferece aos moradores de rua, aos despercebidos, um local para protegerem-se do frio, para usar os banheiros e para conseguir uma possível alimentação.

Gay Talese também explora a iluminação e o jogo de cores da cidade à noite para caracterizar seus cenários. O trabalho com a imaginação e a ilusão tem como exemplo os manequins que são produzidos de acordo com uma beleza padrão e esbelta. A inspiração dos nova-iorquinos por manequins é como um desejo por uma jovem virgem, só que sintética.

A imagem e o espírito de Rita Maria ainda têm um aspecto muito vivo dentro da rodoviária. As faxineiras limpam o local sem qualquer intervenção física. Aliás, a presença delas, não tem significado visual para os frequentadores do terminal rodoviário. Espreitando o terminal de chegada e de partida, o espírito de Rita Maria parece pairar sobre a estrutura alta e metálica. Isso é o que garante a faxineira Marizete Simão Pereira, casada, 46 anos, e totalmente crente na história de ter visto os pés de Rita Maria na sexta-feira santa, enquanto limpava o chão perto dos banheiros.

Na frente do terminal, a imagem de Rita Maria está destacada com uma grande estátua, mas a iluminação, embora precária, não esconde os descuidos nos reparos da estrutura externa, deixando a obra de arte em um completo abandono. Na estátua é possível ver uma venzedura deixada por Rita Maria em setembro de 1982. “Deus é sol, Deus é lua, Deus é a Claridade. Deus é as três pessoas da santíssima trindade. Sai sol, sai sol, sai sol. Em nome de Deus e da Virgem Maria”.

No mundo dos despercebidos de Gay Talese, a cidade de Nova York, lugar populoso, com grandes empresas, grandes profissionais, mas com um trânsito infernal, onde os animais não têm vez, os lixeiros não têm vez, os policiais camuflados na multidão são guardas inofensivos, os moradores de rua que são fortemente esquecidos e jogados ao chão, fazem papel de meros figurantes. A cidade é saturada de uma poluição visual e sonora, onde o olhar de uma pessoa corre como se estivesse cego. O que parece marginal à sociedade padronizada, não tem espaço em Nova York, é intensamente esquecido. Os cenários de uma metrópole camuflam o valor dos esquecidos.

Em Florianópolis, um artista, com uma inteligência fora de série, uma simpatia e um carisma invejável. Este é o morador de rua, Marcelo, nascido em São José do Rio Preto, São Paulo, tem 35 anos e é pai solteiro. Transferiu-se para Santa Catarina visando encontrar o seu mundo. Fazendo uma breve reflexão, Marcelo afirmou que não precisa de nada, além do que, sua alimentação diária e sua roupa do corpo. O resto de sua felicidade, ele demonstra nos rabiscos de um papel. Fazendo desenhos com uma alusão aos seis continentes, Marcelo fala um pouco sobre o iluminismo e demonstra conhecimento no assunto. “Eu gosto de basear meus desenhos no iluminismo, por que foi um movimento científico e intelectual ocorrido no século XVIII e representou a transição do pensamento medieval para o pensamento moderno. Esse movimento buscava o racionalismo e condenava o absolutismo, o abuso da Igreja, a Intervenção do Estado na economia, à propriedade privada e tudo que se opunha ao progresso e ao desenvolvimento”, explicou o artista.

Gay Talese traduz a emoção com uma riqueza de informações e busca sensibilizar o leitor, mostrando a igualdade entre as pessoas. Caracteriza a realidade atual e cruel para alertar e incentivar a mudança nesse aspecto negativo. O valor de um morador de rua é o mesmo valor de um empresário, de um animal abandonado para um cachorrinho de uma senhora, todos têm sentimentos e merecem uma vida conveniente. Esta é uma mensagem ética e o principal fio condutor da reportagem “Nova York, é uma cidade dos despercebidos”, de Gay Talese.

Um olhar diferenciado, uma visão complexa e inteligente do “manézinho” Gay Talese. “Mané” por que conseguiu mostrar-me através de suas leituras de vida o que significa Florianópolis. Ensinou-me a valorizar os despercebidos, enxergar o irreal. Um norte-americano, fora de série, conhecia Florianópolis muito antes de eu pisar na Ilha da Magia.
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Ericky Maier é natural de Braço do Norte (SC), tem 19 anos, e está graduando o quinto período da faculdade de Jornalismo na Unisul. Possui curso de Jornalismo Esportivo na Faculdade Cásper Líbero (SP). Em 2009, escreveu sobre automobilismo para o portal http://contato.net e, em 2010, fez à cobertura das eleições para o site: http://www.unisul.br/unisulhoje. Em 2011, fez participações como comentarista no programa “Papo de Bola” da TVN. Atualmente, escreve e participa do programa “Craque do Futuro” do diário Lance! Ericky Maier é responsável por escrever tudo o que acontece no esporte de Santa Catarina para o portal do Esporte Interativo, que recebe milhares de acessos todos os dias. Além disso, também é Editor Chefe do jornal “O Regional” e repórter do Futebol Emoção da Rádio Regional FM.

ENTRE SEXO E ASSOMBRAÇÃO O DIA A DIA NA RODOVIÁRIA

Alunos de jornalismo da Unisul descobrem o cotidiano da rodoviária

Rodoviária. Segundo o dicionário Michaelis rodoviária significa “Estação de embarque e desembarque de passageiros de ônibus, tanto interurbanos como interestaduais e internacionais”. O que o dicionário não sabe é o que se passa em uma rodoviária. Localizada no Centro de Florianópolis, onde circulam milhares de pessoas todos os dias, o terminal é repleto de mistérios e tradições que precisam de paciência para serem descobertas.

Observo gente de todos os estilos caminhando em direções opostas. Alguns se olham e trocam sorrisos, outros não conseguem nem observar a cara da realidade presente no terminal rodoviário. Difícil imaginar como é o trabalhar na rodoviária Rita Maria e ao seu redor.

Passando um dia no terminal rodoviário de Florianópolis descubro histórias difíceis de acreditar. Converso com Carlos Alberto Pereira, Vilson Adelino de Espínola, Marilete Simão Pereira e Marcelo Bracarense, para saber o que fazem na rodoviária Rita Maria. Em uma dessas conversas descubro que o local tem este nome, em decorrência de Rita Maria; uma garota de programa que vendia seu corpo há anos atrás.

Carlos Alberto Pereira tem uma visão privilegiada da rodoviária. Da cabine ele controla o fluxo de veículos e coordena quem entra e sai do estacionamento da rodoviária. Tarefa fácil se ele, ex-vendedor de uma loja de instrumentos musicais, pudesse selecionar quem entrasse no local. O trabalho de Carlos não é simples, em decorrência do grande número de assaltos da região seu dia a dia ficou arriscado. Com a função de “faz tudo”, Carlos tenta manter o local calmo e tranqüilo para quem deseja estacionar o carro no estacionamento.

Vilson Adelino de Espínola têm uma função complicada no sistema. A rodoviária nunca foi segura e sua obrigação é proteger os passageiros. Com uma mordida na mão ele se apresenta para o grupo informando “a rodoviária é uma bomba-relógio”. Funcionário do Deter, ele garante o sossego do terminal. Antes de Vilson assumir o cargo de fiscal de operações o local era dominado por marginais, prostitutas e alcoólatras. Infelizmente não conseguiu extinguir os baderneiros. Achando que já viu de tudo Vilson conta que presenciou dois juízes federais mantendo relações sexuais no segundo andar da rodoviária.

Vendedor de obras de arte, Marcelo Bracarense aborda as pessoas que transitam na rodoviária sugerindo a compra de suas alusões aos seis continentes. “São várias ideias, culturas e civilizações. É uma obra de arte e você paga o preço que acha que merece”. Sem rumo certo, Bracarense, deixa sua filha com sua mãe em Garopaba e tenta a vida vendendo sua arte. Morando na rodoviária humanidade está dominada pelos burgueses e admite que o mundo não tem mais volta.

Há sempre algo a mais no inesperado. Marilete Simão Pereira também tem algo muito interessante a contar. Abordo-a enquanto realiza seu trabalho de faxineira: “Sexta-feira Santa estava fazendo a limpeza na área externa da rodoviária e após passar o pano observei pegadas em minha direção”. Impressionado com a conversa, saí assustado olhando para os lados ao andar naquele lugar sinistro como se a esperar uma assombração. A rodoviária é um local de gente que conta e inventa histórias.

Por Rodrigo F. Schmitt - Acadêmico de Jornalismo na Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Atuou como assistente de imprensa para a equipe de voleibol da Cimed e Federação Catarinense de Voleibol. Fez estágio na Lúdica – Agência de Comunicação do curso de Comunicação Social da Unisul e atuou como bolsista de pesquisa da Revista Laboratório Ciência em Curso da Unisul.
Possui curso de Jornalismo Esportivo pela Faculdade Tobias Barreto e pela Faculdade Cásper Líbero e de Jornalismo 2.0 – Hipermídias e Redes Sociais pela Escola de Comunicação do Comunique-se.

Retrato de um terminal abandonado

Construído para ajudar no fluxo de transporte coletivo da cidade, o Terminal Cidade de Florianópolis acabou se tornando lar para moradores de rua

O relógio marca seis horas, o sol ainda não nasceu, as ruas estão desertas. Florianópolis ainda não acordou. As seis e vinte o cenário já é outro, o movimento começa a aparecer em todos os lugares. Os carros já estão andando pelas ruas, as sinaleiras param de piscar e começam a funcionar, pessoas já estão circulando pelas ruas. Nos três terminais de transporte do Centro o movimento começa a ficar mais intenso. Mas no Cidade de Florianópolis, encurralado entre a desativação total e um sub-aproveitamento, o dia continua com o ar fantasmagórico da noite, à espera de um projeto de revitalização que não sai da gaveta. Em relação aos outros dois terminais do Centro, o cenário no Cidade de Florianópolis é bem diferente.

Na rodoviária Rita Maria, que recebe ônibus de várias regiões do Estado e do país, os usuários de drogas e prostitutas dão lugar para os moradores de rua e pessoas de baixa renda, que aproveitam o nascer do sol para tentar vender algo ou conseguir algum dinheiro com as pessoas que vêm de fora.

No TICEN (Terminal de Integração do Centro) tudo está em ordem. Muito limpo e organizado, as lanchonetes bem delimitadas, os funcionários bem vestidos. Os monitores começam a mostrar os horários de partida das linhas, os banheiros estão limpos e cheirosos. Vigilantes noturnos e trabalhadores da madrugada buscam transporte depois de mais uma noite de trabalho. Enquanto eles vão para casa, milhares de pessoas chegam de todos os bairros da cidade. Gente que acordou cedo, que ficou mais de uma hora em pé no coletivo para poder chegar ao trabalho, na aula, ou em algum compromisso.

A alguns metros dali, próximo da Praça XV de Novembro, está o Terminal Cidade de Florianópolis. Desde 2003 recebendo ônibus da Grande Florianópolis, o local está abandonado, largado à própria sorte. Como um morador de rua que saiu de sua casa para viver nas esquinas das cidades, ele lembra a história das pessoas que são marginalizadas pela sociedade.

As seis e trinta o sol já começa a aparecer. Vários ônibus chegam lotando as plataformas. Banheiros são o sonho de consumo dos usuários. Para usar só tendo dinheiro e vontade para ir até a Praça XV para usar um sanitário pago, o mais próximo. A sujeira reina em todos os cantos.

Com cinco plataformas o local abriga atualmente as linhas de três empresas. Na plataforma um a empresa Imperatriz faz a ligação entre Santo Amaro da Imperatriz e Florianópolis. A Jotur é responsável pela plataforma dois, a mais movimentada, onde o trajeto entre Palhoça e Florianópolis é realizado todos os dias. Na plataforma quatro os ônibus executivos da Transol fazem o transporte mais confortável da cidade. São veículos com ar-condicionado e bancos reclináveis, que param em qualquer lugar, sem ponto específico. Um sonho para o usuário de coletivo normal, mas que cobra um preço mais elevado por esse conforto. A plataforma cinco é dedicada aos grandes ônibus de turismo e para os carros. Idosos, principalmente, chegam cedo para aguarda o veículo que vai fazer a viagem para diversos pontos do país. Os ônibus que ficam neste local, com dois andares, frigobar, banheiro e bancos reclináveis, são um contraste se comparados aos veículos que ficam nas plataformas ao lado. São ônibus pequenos, sujos e sem nenhum conforto. Tem apenas a função de transportar pessoas de um ponto ao outro.

Os horários de maior movimento do Cidade de Florianópolis são no período da manhã, a partir das seis até as nove, e à tarde, depois das 17 horas. O caos faz parte da rotina do local. Quem está pegando um ônibus pela primeira vez fica perdido. As filas se misturam, uma linha passe a juntar pessoas que desejam ir para outro local, não se sabe qual ônibus pegar. Uma rotina frequente, onde só quem anda de ônibus todo dia consegue entender. Mesmo assim a pergunta mais ouvida na plataforma é “Essa fila é para o Linha Direta?”. Um dos trajetos da linha Barra – Florianópolis, o Linha Direta é um dos ônibus mais cobiçados do terminal, pois, ele chega mais rápido no seu destino, parando em poucos pontos. No meio dessa confusão todos conseguem se entender. No final do dia as filas desaparecem e as pessoas embarcam rumo aos seus destinos.

Os objetos mais vistos no Cidade de Florianópolis são sacolas. A grande parte delas são carregadas por mulheres, que entram nos ônibus com sacolas grandes, pequenas, amarelas, verdes ou brancas. Ônibus lotados nada têm de extraordinário. A população nem se queixa mais e procura conjugar a disputa individual por um lugar com alguns códigos de solidariedade. Quem fica em pé acaba recebendo a ajuda de quem está sentado, que se oferece para carregar as bolsas, um alívio para quem não teve a sorte de conseguir um banco no coletivo.

Os ônibus do Cidade de Florianópolis são uma grande fonte de informações. Em uma viagem entre São José e Florianópolis já é possível saber de tudo que está acontecendo na cidade, basta prestar atenção nas conversas paralelas. Dá para saber quem casou com quem, quem está traindo quem, quando o preço da passagem vai subir...

Diferentemente do TICEN, com suas lanchonetes bem organizadas e limpas, o Cidade de Florianópolis não apresenta o mesmo cenário. Basta um banco, o do próprio terminal, um isopor para guardar as bebidas, diversas balas e salgadinhos para a lanchonete improvisada estar pronta. São vários vendedores, cada um ocupando um pilar do terminal, todos se respeitando, ninguém entrando no espaço do outro.

Além de ter um comércio mais informal, o Cidade de Florianópolis tem um sistema diferente de pagamento. Nada de cartão eletrônico, as linhas intermunicipais só aceitam passe de papel, uma forma de pagamento que ajuda a manter o comércio clandestino de passe, com diversos vendedores oferecendo o produto ao redor do terminal. Os comerciantes acabam aceitando o passe como forma de pagamento, ajudando a criar uma moeda universal dentro da estação. Quem tem passe consegue comer ou se deslocar.

A plataforma três é a mais interessante entre todas as cinco. Usada apenas como estacionamento de ônibus, a falta de movimentação faz com que o local seja lar de moradores de rua. Papelões e cobertores velhos dão mais confortos para essas pessoas, que abandonadas pelas famílias e pela sociedade, usam os bancos e o chão frio do local para dormir. Os maiores companheiros desses habitantes são os cachorros, sempre fiéis aos seus donos, e a cachaça, que serve para esquentar e a ajudar a esquecer os problemas da vida.

Entre os frequentadores da plataforma três, alguns chamam a atenção, como o senhor que está sempre bem vestido e fica por diversos dias sentados no mesmo local conversando com os motoristas de ônibus ou com quem puxa conversa com ele. Às vezes ele some, mas depois de uns dias aparece no mesmo lugar.

Com uma promessa de revitalização do local que já dura anos, o Cidade de Florianópolis continua operando todos os dias, com sol ou com chuva. Só não pode chover muito, porque entra água onde os passageiros costumam ficar sentados. Cenas inusitadas ainda são vistas, como a do morador de rua que vende doces às dez horas da noite para comprar pão para dividir com seus companheiros antes de preparar sua cama de papelão para ir dormir. Nesse horário o Cidade do Florianópolis já está vazio, poucas pessoas esperam os últimos ônibus do dia. A rotina está terminando, mas as seis da manhã vai começar novamente. Uma rotina que nunca acaba no terminal velho, patrimônio da cidade que continua abandonado, mas ainda respira como um gigante que se debate muito antes de morrer.
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Filipe Scotti, 23 anos, estuda jornalismo e acredita que, com esta profissão, talvez um dia poderá mostrar a verdade do que acontece no Brasil e no mundo. Gosta de trabalhar com edição e produção de vídeos. É fã de música e documentários e trabalha como assessor de imprensa.

Os pontos alaranjados do elefante cinza

O terminal Rita Maria é um elefante cinza. Nele, as cadeiras observam as centenas de pessoas que andam, correm e esperam

Durante a madrugada elas ficam quase solitárias, enfileiradas lado a lado, e aconchegam variados tamanhos de ancas enquanto os raios de sol brilham. Apesar dos momentos de solidão e de sustentação de peso, demonstram sempre uma alegria corada em seu corpo alaranjado, a única cor viva em meio ao cinza do Terminal Rodoviário Rita Maria. Um prédio de dois andares com espaço suficiente para uma grande festa, mas onde é possível se sentir solitário em meio às paredes cinzas. O Rita Maria é um elefante cinza. Nele, as cadeiras observam as centenas de pessoas que andam, correm e esperam. E sabem quando alguém tem ou não pressa. Geralmente, os apressados jogam suas coisas de qualquer jeito e procuram desesperadamente algo em suas bolsas e sacolas. Os que têm mais tempo sentam-se e até dormem aguardando a voz charmosa da rodomoça chamá-los para o ônibus no sistema de auto-falante. Outros aguardam qualquer pessoa – ou qualquer coisa - disposta a conversar.

Gilberto Reis aguardava os dois: o ônibus e alguém para conversar. Na mala, 57 primaveras vividas e 40 gravatas. Vestido com terno escuro, chama atenção pela elegância: “As pessoas não olham os outros pelo ser, olham pelo ter”. Para não carregar muitas roupas, carrega as gravatas, um detalhe, que para Gilberto, faz a diferença no look. Por trás do terno há, escondido, um tapa-olho de pirata. Durante o verão, Gilberto se fantasia de pirata nas praias do norte da Ilha. Mais uma forma de complementar a renda, e claro, tirar gargalhadas dos grandes e choros dos pequenos. Houve momento em sua vida que dispunha de dinheiro suficiente para estar bem de vida, mas gastou. “Hoje sou mais feliz quebrado do que quando tinha dinheiro”.

Há quem nunca olhe com atenção para as lixeiras da rodoviária a não ser para jogar algo nela. Jorge da Silva é faxineiro do elefante cinza e durante o percurso a caminho das lixeiras, duas vezes por noite, nunca encontrou nada de valor. Tem 51 anos, é negro, forte, cabelos brancos, combinando com a camiseta do uniforme da empresa Orcali, terceirizada responsável pela limpeza do terminal rodoviário. Trabalha tranquilamente cumprimentando os conhecidos. Jorge não se surpreende com as figuras que transitam na rodoviária, julgadas por muitos dos que passam de bêbados e andarilhos.

Há uma distância aproximada de 30cm é possível sentir o cheiro da cachaça no ar quando se ouve Newaldo Broeto. “É sério! Tô indo visitar meus filhos em Curitiba. Oh, tá achando que eu sou andarilho!”, diz Broeto ao repórter Rodrigo Schimitt quando lhe pergunta o que vai fazer em Curitiba. Newaldo é gaúcho e morador dos Ingleses. Vestia bermuda jeans e camiseta branca com sandália Havaianas azul, sem carregar nenhuma mala. “Minha mala é meu corpo”, diz Broeto, que a cada resposta dá uma divertida gargalhada e deixa, além do cheiro de cachaça, o perfume desconsertante do cigarro no ar.

Entre gestos que passam despercebidos na rodoviária estão os de um pipoqueiro. Apesar de muitos estranhos passarem por sua pipoqueira sem dar um “boa noite”, ele cumprimenta seus clientes e confia nos andantes apressados. Vende o saquinho de pipoca por R$ 3,00, mas deixa o comprador pagar R$ 2,00 na hora e o restante depois. Há quem nunca mais pague o R$ 1,00.

Nem todos que passam no Rita Maria estão dispostos a falar sobre si e das experiências no elefante cinza, mas há sempre os que aguardam por ouvintes curiosos. Ouvidos e olhos atentos e compreensivos. Funcionário do Deter responsável pela vigilância do terminal rodoviário, das 18 às 24 horas, Vilson Espíndola trabalha na rodoviária por falta de opção. “Só tinha vaga praqui”. Vive o impasse de trabalhar onde não gosta e ao mesmo tempo aprender neste local o que talvez não compreendesse fora da selva cinzenta e embriagada do terminal. Ele conta que há um fluxo maior de pessoas pela manhã e à noite, quando as pessoas vão e voltam do trabalho. Seus 28 anos de rodoviária fez perceber quem é suspeito ou não, aparenta perigo ou precisa de ajuda. Mas já se enganou. Quem vai imaginar que uma senhora bem vestida e bonita vai resolver dar peixadas nos seguranças do terminal? Na Sexta-feira Santa uma senhora bem vestida queria pegar o ônibus com uma sacola cheia de peixes comprados no Mercado Público. Os fiscais a informaram que não poderia fazê-lo. Mas um peixe frito ou assado deveria ser saboreado pela senhora que, na tentativa dos fiscais retirar a sacola das mãos da mulher, deu bolsadas de peixes nos homens. Outras vezes acerta. Os que aos poucos vão adotando a rodoviária como casa a cada dia aparecem com uma peça de roupa a menos, até surgirem com hematomas resultantes de brigas na rua. Vilson tem jogo de cintura para convencer os andarilhos a se retirarem do elefante cinza. “Chego abordando como vítima... Acima de fiscal, sou amigo de todo e qualquer dependente (químico)”. Segundo Vilson, falta policiamento e investimento em segurança e infraestrutura para atender os viajantes e trabalhadores. Ele e dois seguranças terceirizados (também da Orcali) são responsáveis pela segurança do terminal rodoviário no período noturno. “Nos últimos 15 anos, a segurança da rodoviária caiu 100%”. No entanto, há aproximadamente 20 anos, prostitutas, alcoólatras de rua e andarilhos frequentavam mais o terminal, muitas vezes em busca da canja que era oferecida no restaurante do segundo andar por um preço acessível. Quaisquer pessoas que sentissem fome poderiam esquentar a alma no restaurante hoje inativo, até mesmo por não haver outras opções nas altas horas das madrugadas de Florianópolis. Nesse período, o fiscal acompanhou o crescimento dos filhos da rodoviária: “Eu vi eles crescerem e virar adultos aqui”. Hoje a rodoviária é uma mãe que abandona seus filhos.

Em todo tempo de trabalho o que mais surpreendeu Vilson foi ver dois homens se beijando. “Vi que o amor entre dois homens é possível”. Ganhou sensibilidade e aprendeu muito. “O que a rodoviária fez de mim? Melhorar; cuidar melhor dos meus filhos; ver o que a minha mulher precisa; o que o álcool faz...?”. Tenta alternar a rigorosidade do trabalho de ser fiscal com o afeto que acabou desenvolvendo pelos personagens que precisa controlar e reprimir, sem esconder a tensão moral que isso lhe causa. “Eu tento que ser eu mesmo.”

“Moça me dá um real”, ouvi quando caminhava para a rodoviária. Acabara de comprar orelhas de gato para comer enquanto a aula não começasse no terminal. Como sempre, fiquei sem reação ao ouvir o clamor social. O homem estava sentado no chão, encostado na grade do estacionamento da rodoviária. Passei reto e ele me chamou de filha da puta. Parei; ele não terminou de pronunciar o palavrão. Voltei e entreguei a ele as orelhas de gato. “Oh, obrigada, querida”, disse ele, com um sorriso desdentado e sujo mais lindo do que muitos sorrisos amarelos direcionados para mim nos corredores dos cidadãos engravatados e visíveis da cidade. Entrei na rodoviária ainda tomada por uma sensação estranha de ter feito algo certo e errado. Sentei-me na escada preocupada sobre o que escreveria sobre esse gigante de onde se vem e se vai; até que olhei as cadeiras alaranjadas do terminal rodoviário, pontos alegres no elefante cinza, como as pessoas que por ele passam.
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Valéria Valdeci Martins é estudante de Jornalismo, técnica em Meio Ambiente, clarinetista e gestora cultural. Moradora do Ribeirão da Ilha é apaixonada pelas tradições culturais ilhoas.

A vida é uma rodoviária

Histórias de vidas surpreendentes em um lugar no Terminal Rita Maria

Dizem que a vida é como a rodoviária. A rodoviária é um lugar de trânsito, onde pessoas vêm e vão ao ritmo da mudança nos letreiros luminosos. É um lugar de reencontros amorosos, de vidas que de alguma forma o destino cruzou. Mas também é local de trabalho, onde pessoas carregam histórias surpreendentes. É porto de passagem, mas também é memória.

No Terminal Rita Maria, em Florianópolis, ao lado do desembarque encontrei Eliane, com um de seus ombros encostados na parede, observando aquelas pessoas que se movimentam e mudam completamente de rosto.

A mulher de pele morena, que mantém limpo e agradável o banheiro ao lado do desembarque, vem de Biguaçu quase todos os dias, e troca seu suor por um salário mínimo no final do mês. O valor de R$ 545 foi estipulado como salário mínimo de um cidadão de carteira assinada pelo governo federal brasileiro no início deste ano. A quantia deveria suprir as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, como alimentação, moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Mas não é o caso de Eliane, que recebe em mãos menos de um salário mínimo, pois desta quantia é necessário descontar INSS, e os tais benefícios, vale-transporte e alimentação.
Mesmo assim, Eliane diz gostar de trabalhar no lugar. “Eu gosto de trabalhar aqui porque todo o dia é diferente. Já estou há um ano e meio e ainda não tenho vontade de ir embora. Fiz bastante amizade com o pessoal que trabalha comigo, e já conheci muita gente”, contou-me em meio a tantas outras estórias.

Eliane realmente deixa aquele banheiro impecável que custa R$0,50 para ser utilizado. No final do dia, um supervisor confere a quantia. Se faltar algum trocado, Eliane tem de pagar. Para uns, 50 centavos é apenas uma moeda, um trocado, mas para ela é seu trabalho e custa muito.
A faxineira quase sempre fica do lado de fora do banheiro, vendo o movimento e aguardando alguém que a perceba para conversar. Quando então decidi puxar conversa, não parou de falar por um minuto, fez questão de contar estórias impressionantes sobre o seu dia a dia. Mostrou que sofre com um preconceito muito grande pelo fato de trabalhar em um banheiro público.
Começa a trabalhar no início da tarde e termina à noite, por volta das onze, e tem direito a uma folga a cada quatro dias. Para a moça, finais de semana e feriados não foram feitos para descasar. A faxineira não tem aquela rotina corriqueira dos órgãos públicos. São oito horas por dia, recolhendo lixo, limpando o chão, os espelhos, os bacios, e a má-educação daqueles que não respeitam o seu trabalho.

“Algumas pessoas acham que têm o rei na barriga, e se recusam a pagar. Tem dondoca que diz que é um absurdo pagar 50 centavos para usar o banheiro. Garanto que o “perfuminho” caro ela não se recusa a pagar. Ontem mesmo passou uma dessas aqui. Ela entrou, usou, fez o que queria e ia sair sem pagar de nariz empinado. Mas eu disse que ia meter a porrada se ela não pagasse, e pagou rapidinho”, disse convicta. E completou: “Tem gente que avacalha, jogando merda na parede, em cima do tampo, mijando fora do bacio. É horrível.”
Com seu sotaque ilhéu, ela também disse algo a respeito das recepcionistas, que “se acham as gostosonas” e que só ganham R$ 50 a mais que ela.

Mas Eliane não trabalha todos os dias naquele banheiro do lado do desembarque. As faxineiras cumprem um esquema de revezamento: umas ficam no banheiro pago, ao lado do desembarque, outras no embarque, no lado oposto da rodoviária, onde fica o banheiro gratuito. Outras ainda limpam o chão e as cadeiras de espera dos passageiros, no primeiro e segundo andar. A moça afirma que prefere ficar no banheiro, pois é “mais tranquilo e tem a cadeira para descansar as pernas”.
Perguntei o que eram aqueles compartimentos ao redor do banheiro. Ela disse que eram guarda-volumes. “Isso daí são guarda-volumes. O pessoal guarda as malas aí quando não pode levar. Uma vez um cara deixou a mala de um casal que ele trouxe e não conseguiu levar. O casal apareceu aqui depois de um tempão para pegar a bagagem e teve que pagar R$ 250, tu acreditas???”, disse a faxineira, perplexa com a quantia.

Em meio a nossa conversa, chega um homem negro, com aproximadamente 60 anos, vestindo o uniforme da empresa que presta serviços de limpeza e segurança para a rodoviária. Com uma pá em uma das mãos e uma vassoura na outra, ele reclamava de dores no joelho. Disse que quase não foi ao trabalho para ir ao hospital. Foi quando perguntei ligeiramente: “Porque o senhor não pega um atestado?”. Ele olhou para Eliane, como se tivesse denunciando a minha ingênua ignorância e disse com os olhos arregalados: “E tu acha que adianta? Eles descontam mesmo assim, minha jovem”.
Papo vai papo vem, o faxineiro não deixou de falar sobre a injustiça que a empresa a qual ele é contratado, assim como Eliane e todos os faxineiros. Disse que o Governo do Estado repassa para a empresa o valor de R$1.400 para cada empregado e que a empresa por sua vez, repassa apenas um salário mínimo, ou seja, menos da metade desta quantia.
Fiquei boquiaberta, com tamanha injustiça. Pessoas humildes, honestas, e de bom coração que não podem reagir à luta por seus direitos, pois necessitam do trabalho, como eles. Essa gente faz parte do nosso cotidiano, mas fingimos que não vemos, e somos levados a achar que essa condição é natural.
Descobri seres humanos maravilhosos naquela terça-feira à noite, e que cada um deles transporta uma história peculiar, como a rodoviária, uma bíblia de encontros e reencontros de vidas que se transformam ao longo da trajetória.
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Luana Costa é estudante de jornalismo na Unisul e estagiária na Eletrosul
Centrais Elétricas S.A. Aos vinte e poucos anos, acredita que para levar uma
vida saudável, basta ter paciência, saber escutar e compreender as situações das pessoas, beber água e usar protetor solar diariamente.