terça-feira, 2 de março de 2010

À Atlântida dos proscritos

por Raquel Wandelli

Já soaram as seis badaladas do ângelus quando as formigas-operárias que conferem às ruas um ar doméstico e executivo se retiram em direção aos lares e academias. Nesse instante mágico em que o disco vermelho-sangue mancha o horizonte, uma pequena multidão começa a deixar os porões da cidade. Sob o manto noturno de sonho e horror se arriscam os habitantes dos coretos, praças, bancos, cantos fétidos de urina, ocupantes legítimos dos aposentos abandonados e mal-iluminados do centro de Florianópolis. Ao seu encontro caminho com meu pequeno pelotão de estudantes de jornalismo que acabaram de ler e debater O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, A hora da estrela, de Clarice Lispector, Relato de um Náufrago, de García Marquez e Entrevista, o diálogo possível, de Cremilda Medina, todos marcados por experiências radicais de alteridade na literatura e no jornalismo.

Uns lampiões vitorianos flambam o cenário de esfumaçado louro antigo. Luz dourada em fundo amarelo derrama sobre a sarjeta certo charme urbano. E de certa aura nobre se veste a praça dos proscritos Uma cidade se vai e outra se ergue como se atravessando o cordão entre o visível e o invisível, como uma civilização maldita que só emerge no limite entre o dia e a noite. Essa imagem me vem à cabeça e logo a compartilho com meus mestres-aprendizes, mas eles já estão absortos na vivência desse mundo que até então lhes passara despercebido.

Aos sustos e com fome de comida, crack, cachaça e outras drogas da existência, despertam os pelotões de uniforme cor de poeira... Velhos, meninos, meninas, homens e mulheres órfãos de seus filhos e pais. Exilados ou auto-exilados de seus lares que adotam a rua como mãe e madrasta e os cães como amigos. E os velhos com sonhos e traumas de menino e os meninos com olhos e coração de velho que vão saindo das lajotas enchem de vida e verdade faminta essa Atlântida reaparecida. Eles têm úlcera no estômago e cicatrizes nos rostos, pescoço, braços e pernas. As cicatrizes nos interessam...

“A rua não é um lugar digno pra se morar”, diz a placa da prefeitura - à entrada da Praça XV. Tadeu, 29 anos, bem sabe disso. “Estou aqui de passagem”, insiste o moço muito alto, meio negro, meio branco. Mas a rua foi o único porto, rito de passagem, que lhe restou há cinco meses, quando perdeu o emprego de cobrador da Transol e a mulher e se tornou escravo das drogas. “Aqui eu não fico, não é lugar pra mim”, diz o guardião do Coreto da Alfândega, que me pede dinheiro pra comprar fraldas descartáveis em troca de nos apresentar seu submundo.

Resisto e compro-lhe primeiro remédio pra dor de dente e anticéptico antisséptico para os ferimentos na mão que fraturou no dia anterior em uma queda. Mas acabo cedendo. Quem pode julgar as moedas desses habitantes clandestinos, se também a nós, cidadãos legais, pouco ou quase nada escapa de comércio em nossas relações? “Me compra um pacote de fraldas que amanhã vou visitar minha filha”, me pede uma segunda vez, quando lhe ofereço os analgésicos. E já nem sei se me pede ou ordena, com uma dignidade quase insana. A partir de então, nas três próximas vivências de rua traríamos sempre conosco alimentos, livros, jornais, revistas, agasalhos e algumas moedas para de algum modo negociado respeitar a ética dessa economia de trocas simbólicas.

Com a tristeza de uma menina que acaba de entrar na zona e ainda não aceita seu metiê, Tadeu fala do esforço da mãe e da ex-mulher para tirá-lo das drogas e do destino do pai, já morto. “Pegou HIV de mulher vagabunda”. No terceiro encontro, descrevo para ele alguns moradores de rua que conheci na primeira vivência com alunos da Unisul, no outono de 2004. Ao lado de Tadeu, localizo Adalberto, encolhido debaixo de um cobertor de lã em um banco do Coreto. Reconheço-o pelo chapéu de marujo. Cumprimento-o com entusiasmo e me aproximo para apresentá-lo aos dois alunos que me acompanham. Ele corresponde pronta e afetuosamente. “Professora! Claro que me lembro...”. Presenteio-o com um exemplar do jornal-laboratório Fato & Versão especial “Álbum das Ruas”, publicado na época, e pergunto pelo paradeiro dos personagens das fotos. Concluo que o velho negro Adalberto é o único sobrevivente dessa memória. Todos os outros morreram ou desapareceram das ruas.

Lembro-me dos alunos da época, todos já formados, e sinto pelo vínculo que fizeram com aquela gente e pelo que significaram em sua formação. Por um tempo, tínhamos o prazer de saudá-los nos encontros casuais pelas ruas do centro, e nos alegrávamos de saber seus nomes e dos cães de rua que adotavam. Na verdade, era orgulho de ter feito nossos amigos aqueles cidadãos tão estranhos e temidos. Orgulho de não fazer mais parte dos que precisam desviar o olhar para disfarçar o medo ou o desprezo. Com o tempo e a rotina, perdemos muito dessa sensibilidade e talvez eles tenham se tornado quase invisíveis novamente, mas, acredito, nunca desaparecerem por completo da nossa perspectiva. Pensei na nova turma do segundo semestre de 2009 que escolhera o mundo das ruas como cenário de sua vivência, e desejei a cada aluno que fosse tocado pela oportunidade de ter também um impacto profundo no seu modo de ser jornalista e de ver o outro.

Para nossa esperança, ninguém passa imune a essa experiência, muito menos esta turma. Os textos publicados aqui mostram a repercussão na alma, o envolvimento, a negociação de códigos culturais, a perplexidade, o interesse pela história do outro que vive no limite, o esforço de diálogo a que assisti maravilhada. Mostra, sobretudo, a queda (provisória?) de muros que separam o mundo dos cidadãos visíveis e invisíveis. Meu desejo, como educadora, é que esse impacto seja duradouro, se não eterno, para poder vê-los sempre ouvindo as vozes subterrâneas da cidade, tão iguais e diferentes.

Como disse Edilson, riscando uma faixa imaginária no peito com uma candura de moleque que fez parecer indefeso o olhar de início tão agressivo e ameaçador: “Agora vocês fazem parte da Gangue Praça XV”. Isso significa ter uma ponte para atravessar até o outro e retornar já não sendo ilha.

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